Pela primeira vez o Supremo Tribunal Federal (STF) vai debater o direito ao aborto até as doze primeiras semanas de gestação por livre decisão da mulher. Cerca de 50 representantes de organizações e órgãos do governo foram habilitados para se manifestar em dois dias de audiência pública, 3 e 6 de agosto, sobre a ADPF 442, ação que contesta a constitucionalidade da criminalização da prática. Enquanto representantes da sociedade civil, contrários e favoráveis à proposta, debatem na corte, o festival feminista “Pela vida das mulheres” vai ocorrer em frente ao Museu Nacional, em Brasília, em apoio à descriminalização do aborto. Atos nas cidades também podem se integrar à ação por meio de cadastramento no hotsite dedicado à mobilização. Convocada pela ministra Rosa Weber, a audiência pública é o início do processo de discussão na sociedade que vai dar bases à decisão do plenário sobre o tema.
(Catarinas, 24/07/2018 – acesse no site de origem)
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Proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Anis – Instituto de Bioética, a Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF) 442 terá sua primeira audiência após um ano e cinco meses de protocolada. “É um momento muito importante do processo, em que a sociedade civil vai ser ouvida pela corte. A corte reconheceu que esse é o momento de ouvir com seriedade os argumentos relacionados à descriminalização do aborto, de ouvir a ciência e organizações de direitos humanos, inclusive internacionais. Esse tema precisa ser tratado como de direitos e isso vai acontecer. Embora não seja um momento de votação, é crucial para o debate”, afirma a advogada Gabriela Rondon, da Anis.
A questão colocada ao STF é que, à luz de direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988, a prática do aborto por livre vontade da mulher, desde que realizado nas primeiras 12 semanas de gestação, passe a não ser mais uma conduta tipificada nos artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940. Esses artigos respectivamente criminalizam a mulher que pratica o aborto e as pessoas que o provocam com o consentimento dela. “A ação não pede a exclusão dos artigos, mas a leitura deles conforme a Constituição para considerar que o aborto nas primeiras 12 semanas não seja crime. Isso porque a discussão do supremo é sempre sobre como ler a lei de acordo com a Constituição”, explica Gabriela.
O texto da ADPF cita diferentes métodos de interpretação constitucional que levaram ao mesmo resultado: a inconstitucionalidade da criminalização do aborto em vários países. A maioria destes países autoriza a interrupção da gestação por decisão da mulher até 12 semanas de gestação, por isso o estabelecimento deste marco temporal.
Segundo argumentam, as razões jurídicas da criminalização não se sustentam porque violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas.
“Na questão do aborto, não haveria conflito entre direitos fundamentais, dada a impossibilidade de se imputar direitos fundamentais ao embrião ou feto. Como um exercício argumentativo concorrente, no entanto, seria uma ponderação entre os direitos fundamentais das mulheres e o respeito ao valor intrínseco do humano no embrião ou feto”, diz trecho da peça.
Conforme apontou a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), uma mulher recorre à prática do aborto a cada minuto no Brasil. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a criminalização leva uma brasileira à morte a cada dois dias. Caso de Ingriane Barbosa, de 30 anos, que morreu na última semana, em Petrópolis, Rio de Janeiro, depois de tentar induzir o aborto com um artefato de ferro e um talo de mamona. A jovem sofreu uma infecção generalizada após ficar internada sete dias no Hospital Alcides Carneiro (HAC). Ingriane tinha três filhos de 2, 7 e 9 anos. De acordo com o Ministério da Saúde, complicações do aborto inseguro estão entre as cinco principais causas de mortalidade materna no país.
O debate
As audiências vão ocorrer das 8h40 às 12h50 e das 14h30 às 18h50 e serão transmitidas ao vivo pela TV Justiça (também via canal no Youtube). O acesso ao plenário será público, porém não haverá espaço para intervenção da plateia. Cada expositor terá 20 minutos de fala e ao final de cada turno ocorre o debate com ministros presentes.
Serão em média 25 expositores por dia, entre representantes do Ministério da Saúde, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Academia Nacional de Medicina, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e de organizações em defesa dos direitos das mulheres como Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), Católicas pelo Direito de Decidir e internacionais como Women on Waves. A maioria dos grupos que se opõem à ação são religiosos, entre eles CNBB (Conferência Nacional dos Bispos), Associação dos Juristas Evangélicos (Anajure) e Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família.
A ADPF 442 bateu recorde de pedidos de instituições que querem participar da discussão, apresentando argumentos aos ministros, os chamados amicus curiae (que em latim significa “Amigo da Corte”). São 40 pedidos, 29 favoráveis e 11 contrários. Divergente, o Governo de Sergipe apelou para o instinto materno e defendeu a prisão como uma maneira de proteger a mulher. “O Estado de Sergipe pretende contribuir apresentando números reais (…), esclarecendo que mães nunca optam voluntariamente pelo abortamento (conduta que vilipendia o instinto materno de defender a vida de seu filho acima de qualquer coisa, inclusive de sua própria vida), sendo antes pressionadas a realizá-los; poderá demonstrar que o tipo penal se afigura protetivo às mulheres”, diz parte da peça.
O discurso pela manutenção da criminalização é prioritariamente religioso e formalista, como analisa Luciana Boiteux, advogada do PSOL. “Imaginei que seriam mais criativos. A argumentação é acima de tudo religiosa. Há uma combinação com argumentos formalistas, porque eles reivindicam o espaço do parlamento onde têm maioria. São organizações que já têm pauta articulada de defesa da manutenção do conservadorismo, de causas contra os direitos das mulheres”, avalia.
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Para a advogada a audiência pública é um espaço para a promoção de um debate humanitário sobre o tema. “O debate feito pelas religiões é interditado, proibido. Ao trazer o debate para o Brasil todo acompanhar, vamos dar condições para que as pessoas possam se informar. Quanto mais informações, maiores as chances de terem uma abordagem humanitária, mais respeitadora dos direitos das mulheres. Favorece a visibilidade do tema e um debate honesto, franco, aberto, para levar informações a que parte da sociedade brasileira não tem acesso”, assinala a advogada.
Luciana assinala que “está havendo maior apropriação das pessoas e organizações em relação à ADPF, e ao entendimento do STF como um espaço legítimo de disputa e resistência”.
Silvia Camurça, representante da SOS Corpo Instituto Feminista pela Democracia, acredita que a audiência pública abriu uma possibilidade de reanimar e rearticular a Frente Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto em vários lugares do Brasil. “Isso é muito bom porque estamos na reta de um 28 de setembro (Dia de luta pela Legalização do Aborto na América Latina e Caribe) potente, diante do crescimento dos ataques conservadores, e por outro lado porque 8 de agosto é dia de votação na Argentina, desta vez no Senado. A gente está num momento de efervescência no debate por conta de toda essa mobilização”, destaca.
A ativista atenta para a importância de mobilizações locais. “Precisamos debater com as mulheres os efeitos nefastos da criminalização sobre nós e o significado da legalização para tornar o aborto um direito e um dever do Estado. É o momento de ampliar a crítica feminista ao Estado patriarcal que mantém no seu corpo jurídico o controle sobre a sexualidade e a reprodução das mulheres”, afirma.
Recentemente a Febrasgo lançou nota pedindo aos profissionais de saúde e sociedade que “não criminalizem a mulher que voluntariamente se submete à interrupção da gravidez”. Composta por representantes de todas as sociedades de Ginecologia e Obstetrícia das 27 unidades federativas do Brasil, a assembleia geral da organização aprovou, por consenso, o entendimento de que “a decisão de realizar ou não um aborto compete única e exclusivamente à mulher”.
Somente em 2017, mais de 330 processos por autoaborto foram registrados por 18 tribunais de justiça do país, conforme levantamento feito pelo Portal Catarinas e GHS Brasil. Como apurou a série Do pronto-socorro ao sistema penal, publicada pela mídia feminista, o sistema de saúde é a principal forma de criminalização das mulheres no país. Casos de prisão apurados por Catarinas são mencionados na ação como comprovação dos danos da criminalização, especialmente na vida das mulheres pobres e negras.
De acordo com a pesquisadora Sonia Corrêa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW sigla em inglês), se a inconstitucionalidade da lei penal for entendida pela corte, o aborto será descriminalizado no país, ou seja, não haverá mais base legal para a denúncia de autoaborto ou aborto induzido com o consentimento da gestante. “Os artigos em questão vão deixar de ter vigência. Nem polícia, nem médicos vão poder denunciar as mulheres. A polícia também não poderá fechar clínicas e prender pessoas pelo uso do comprimido abortivo”, destaca a pesquisadora.
Aborto na corte
O aborto não é um tema estranho às cortes internacionais e nem mesmo à corte brasileira. O último julgamento relacionado à prática terminou em 2012, depois de oito anos de discussão, quando a ADPF 54 foi julgada procedente e a interrupção da gestação de um feto anencéfalo passou a ser direito. Essa ação só teve sua primeira audiência pública depois de quatro anos protocolada.
Desta vez, no entanto, o questionamento sobre a constitucionalidade é mais amplo para garantir a livre decisão das mulheres. “Uma decisão favorável significa que o aborto será descriminalizado até as 12 semanas e que nenhuma mulher poderá ser presa, ou criminalizada de alguma forma, ou ter direito ao aborto negado. O que se espera, da mesma forma como ocorreu com a ADPF da anencefalia, é que em seguida a política de saúde se organize para passar a entender que tanto o médico tem que ser treinado para o atendimento nesse novo cenário, como terão que ser lançadas normas técnicas, que não são competência do Supremo, mas do executivo, uma vez que descriminalize”, explica a advogada da Anis.
Foi através de decisões de cortes supremas que outros países garantiram ou ampliaram o direito ao aborto. Sonia Corrêa explica que em vários países como Alemanha, França e México, as leis que passaram a tratar o aborto como direito tiverem sua constitucionalidade interrogada e houve decisão favorável. Pelo menos três países alteraram a legislação do aborto por definição direta da corte: Estados Unidos, em 1973; Colômbia, em 2006, e Canadá, onde desde 1988 o aborto não é mais tipificado na lei penal. No clássico Roe v. Wade, a decisão sobre um caso concreto, julgado procedente pela Suprema Corte estadunidense, estabeleceu parâmetros para todo o país.
A Colômbia foi o primeiro país da América Latina a fazer uma revisão constitucional da legislação criminal de aborto nos anos 2000. O país era um dos mais restritivos do mundo. Uma decisão da Corte Constitucional colombiana, sentença C-355/06, tornou o aborto um direito em três situações: se a vida ou a saúde da mulher estiver em perigo (saúde física e mental); se a gravidez for resultado de estupro ou incesto; se a malformação fetal for incompatível com a sobrevida extrauterina do feto. “O julgamento na Colômbia é o que mais se aproxima do Brasil, no qual a partir de uma tese abstrata a constitucionalidade da criminalização foi questionada. A Corte colombiana fez uma série de recomendações ao Executivo para que a decisão fosse cumprida”, explica Sonia.
Câmara, Senado e Governo Federal já se posicionaram contrários à discussão do tema na corte. Um dos principais argumentos apresentados é que não caberia ao Poder Judiciário a competência de legislar. “Realmente não é função do judiciário legislar. O Supremo vai fazer o controle da constitucionalidade, que é o seu papel”, defende a pesquisadora.
Sonia esclarece que o Supremo pode ser acionado para questionar normas legais, em especial no campo penal, onde, segundo ela, se infringe mais a Constituição. “O Brasil tem uma tradição penalista, punitivista, uma cultura que tem o pelourinho na alma. A lei penal vive infringindo a norma constitucional. Nesse sentido a petição interroga a constitucionalidade da criminalização do aborto, oferecendo elementos sólidos ao Supremo”.
STF e garantia de direitos
Diante de um Congresso Nacional sob a marca do fundamentalismo religioso, o poder judiciário é apresentado como alternativa à garantia dos direitos fundamentais das mulheres. “É o caminho possível no atual contexto político, muito semelhante ao que se passou nos EUA. Lá também o movimento feminista se viu confrontado pelo dilema de optar por uma grande mobilização social capaz de pressionar o parlamento a aprovar uma lei, ou recorrer ao Poder Judiciário, onde teria que convencer nove ministros da inconstitucionalidade da criminalização. Esse também era um momento complexo, de grande turbulência social, e entendeu-se que a via do judiciário seria mais acessível. A decisão provou-se acertada”, afirma Mariana Prandini, advogada do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular.
Eloísa Machado, professora de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), lembra que há décadas organizações e o movimento de mulheres incidem no Legislativo para promover a descriminalização do aborto. Nos últimos anos precisaram concentrar esforços para impedir retrocessos em direitos sexuais e reprodutivos, especialmente no tema da interrupção da gestação. “A ascensão de um perfil mais conservador ao Congresso, como vemos nas últimas legislaturas, não deixou outro caminho senão reivindicar direitos no tribunal constitucional, que tem a principal missão de proteger e garantir os direitos fundamentais. Diante da indisposição do Legislativo para os direitos das mulheres, essas recorreram, assim, à instância contramajoritária de proteção constitucional”, coloca Eloísa.
Mariana Prandini reitera a posição de que o Supremo é espaço legítimo de atuação contramajoritária para garantia dos direitos de minorias sociais, que assim se caracterizam não do ponto de vista numérico, mas de acesso a espaços de poder. “Ao descriminalizar o aborto, a corte garante direitos de minorias sociais em detrimento até do entendimento majoritário de que este não deveria ser um direito. Já temos um histórico de atuação do STF nesse sentido, como por exemplo na decisão sobre o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. É o momento em que o Poder Judiciário age para garantir direitos fundamentais, ainda que contra o entendimento hegemônico, como ocorreu em relação à descriminalização da posse de drogas para consumo”.
O ministro Celso de Mello, no julgamento da ADPF 54, destacou a função contramajoritária do poder judiciário no Estado democrático de direito para a proteção de grupos vulneráveis contra “eventuais excessos das maiorias”. “O STF não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício da igualdade, da intimidade, da autodeterminação pessoal, da liberdade e dos direitos sexuais e reprodutivos, sob pena de descaracterização da própria essência que qualifica o Estado democrático de direito”, ponderou.
Para a pesquisadora Sonia Corrêa, independente de haver ou não obstáculo no campo legislativo, que se trata de uma questão de contingência política, a Corte é um espaço legítimo para o questionamento da constitucionalidade. “Em qualquer momento poder-se-ia levar ao Supremo uma interrogação de constitucionalidade da lei penal em vários dos seus aspectos. Isso já aconteceu no Brasil em relação à posse de drogas para consumo, quando o julgamento de um caso concreto foi transformado em jurisprudência”.
No texto da ADPF 442, as advogadas que a assinam explicam que a ação é resultado de um processo de defesa do tema do aborto como questão de direitos pela Suprema Corte. Na ADI (Ação de Inconstitucionalidade) 3510, em 2009, a corte superou a pergunta sobre o início da vida, garantindo a possibilidade da pesquisa com embriões, e fundamentou a interpretação de que não há como imputar-lhes o estatuto de pessoa ou mesmo o caráter absoluto do direito à vida.
No julgamento da ADPF 54, o STF alinhou-se a tendências internacionais no enfrentamento da questão do aborto por causais, além de reafirmar a interpretação de que não há direito absoluto no ordenamento. A decisão mais recente ocorreu em novembro de 2016, quando a primeira turma do STF julgou o HC 124.306 sobre a prisão preventiva de funcionários de uma clínica clandestina de aborto no Rio de Janeiro. A maioria dos ministros seguiu o voto de Luís Roberto Barroso que considerou inconstitucional a criminalização do aborto voluntário nas três primeiras semanas de gestação. Segundo ele argumentou, a criminalização é uma “medida legal desproporcional que viola direitos fundamentais das mulheres”.
A constitucionalista Eloísa Machado explica que para garantir a supremacia da Constituição, um tribunal decide quais leis estão em acordo ou desacordo. “No sistema constitucional brasileiro, há um controle difuso e um controle concentrado. No controle difuso, qualquer juiz poderá julgar uma norma inconstitucional e a decisão valerá apenas para um caso concreto e poderá ser julgado pelo Supremo que poderá dar efeitos mais amplos à decisão. No controle concentrado, a ação ingressa diretamente no STF, como as ADIs e ADPF, e a decisão vale para todos. Por se tratar de um questionamento à legislação anterior à Constituição, o instrumento correto é a ADPF”, detalha.
Paula Guimarães