(El País, 01/01/2015) Querida Presidenta:
Antes de esboçar as primeiras linhas desta carta, já há meia dúzia de leitores com o rosto franzido reclamando por um “a”. Fique tranquila, acontece com a senhora, que provoca todo tipo de paixões, mas também com Michelle Bachelet e Cristina Kirchner. Ninguém parece gostar da palavra presidenta. “É uma invenção do PT”, dizem os que pegam mais leve. Até na própria redação já se ouviu: “Por que a chamamos de presidenta? É que soa esquisito”. Pois bem, paciência, tomara algum dia deixe de ranger nos ouvidos. Se não existisse o rótulo tentaríamos inventá-lo, mas felizmente a palavra é oficial desde 1899 e está registrada pela Academia Brasileira de Letras. Não há por que não usá-la.
Já sucumbimos ao fato —cultural e machista— de ter que chamar à senhora de Dilma, à colega argentina de Cristina e à ambientalista de Marina, como se fossem nossas vizinhas às que gritamos da varanda para que nos deem um par de ovos. E enquanto visualizo a imagem da Dilma com um avental rosa batendo à minha porta, preciso me referir aos seus colegas homens pelo sobrenome, com a distância que merecem seus cargos: Campos, Barbosa, Carvalho, Mercadante, Cunha… Acredito que, por enquanto, perdemos essa batalha.
Mas há outras.
Mais de 5.000 mulheres por ano continuam sendo mortas no âmbito familiar no Brasil. A lei Maria da Penha, que o pastor Silas Malafaia associou, com humor infeliz, ao embate verbal de Aécio Neves com a senhora em um dos debates eleitorais, não tem reduzido a sangria dos feminicídios no país, segundo o Ipea. A taxa de mortalidade por cada 100.000 mulheres foi de 5,28 no período 2001-2006, antes da aprovação da lei, e de 5,22 entre 2007 e 2011, segundo os últimos dados disponíveis. “Os crimes de feminicídio têm devastado o Brasil. São praticados com requintes de crueldade e terror pela carga de ódio, na sua grande maioria, quando as mulheres decidem dar um basta numa relação“, dizia este mês a representante da ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman.
A cada quatro minutos uma mulher foi vítima de estupro no Brasil em 2013. Os arquivos policiais relatam o abuso sexual de mais de 50.000 mulheres, segundo o último relatório do Fórum de Segurança Pública. Os casos, segundo os especialistas, podem chegar aos 143.000, pois duas em cada três mulheres continuam sem denunciar. O Ipea, da sua parte, eleva essa cifra a mais de meio milhão de vítimas, 70% delas menores de idade.
Queria aproveitar esta carta, senhora presidenta, para lembrar aquela polêmica pesquisa sobre a percepção do brasileiro sobre a violência de gênero. Ela foi publicada com alguns percentuais trocados, mas mesmo assim as conclusões corrigidas também foram alarmantes. Segundo 65,1% dos entrevistados “mulher que é agredida por parceiro e continua com ele gosta de apanhar”, enquanto 26% deles, e delas, concordaram total ou parcialmente com que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Conforme 58,5% dos entrevistados, “se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”.
Não vou aspirar, senhora presidenta, a que as ruas parem de mandá-la tomar no cu, pois o ambiente está tenso, e se o presidente fosse outro, teria, provavelmente, mesmo destino. Geraldo Alckmim mesmo já foi mandado ainda mais longe nos protestos de junho de 2013. Mas espero, sim, não ver mais uma charge que a ridicularize como se fosse uma garota de programa, ou um candidato com o dedo em riste em direção ao seu rosto, ou um portal repassando seus melhores looks deste ano. Após ouvi-la falar em nome “de milhões de mulheres guerreiras e anônimas” que, encarnadas na sua figura, voltam a ocupar “o mais alto posto dessa nossa grande nação”, seria de esperar, apenas, que 2015 seja um ano melhor para as mulheres.
Atenciosamente,
Uma mulher
María Martín
Acesse no site de origem: Querida presidenta… (El País, 01/01/2015)