De togas, ternos e batinas: a presença religiosa na educação pública, por Gisele Pereira

04 de outubro, 2017

Decisão do STF sobre ensino religioso mostra que a toga não deixou de ser batina

(CartaCapital, 04/10/2017 – acesse no site de origem)

O recém e equivocado parecer da primeira turma da Suprema Corte a respeito do Ensino Religioso confessional nas escolas públicas traz à tona um importante debate há tempos relegado a um território arenoso. Setores conservadores vêm ocupando esse território e movendo-se nele com destreza e naturalidade, enquanto progressistas desconfortáveis diante de sua instabilidade evitamos adentrar em seu núcleo, circundando não mais que suas margens.

Os votos dos ministros favoráveis ao Ensino Religioso confessional não poderiam expressar com melhor precisão o que está impregnado no mais raso senso comum: uma total incompreensão a respeito do que venha a ser um Estado laico, do campo religioso brasileiro e menos ainda do lugar que ocupa a religião e os limites de sua interferência no ordenamento público regido por leis democráticas.

As ideias de tais magistrados são, por si só, uma grave afronta à laicidade e democracia. São expressões  de uma toga que não se habituou a deixar de ser batina, reminiscências  do regime do padroado quando poder político, jurídico e religioso, fundiam-se uma só “roupagem”, uma só estrutura.

A batina que tampouco se habituou a deixar de manusear o martelo que encerra a sentença a respeito do que é válido, correto, verdadeiro, justo em todas as dimensões da existência, permanece agarrada aos seus privilégios e ditando as regras da vida coletiva, para muito além dos limites que lhe são devidos. Demonstrando que o advento da República e a separação oficial entre Estado secular e religião Católica, não foi capaz de eliminar os costumes do regime do padroado do modus operandi da política brasileira.

Sem dúvida o poder religioso assume atualmente outros contornos em um campo religioso amplamente vasto, contudo o correlação de forças continua pendendo favorável à Igreja Católica que gozava do status de religião oficial do Estado. No seu lastro outras denominações cristãs outrora amplamente combatidas, hoje, sob trajes seculares, incidem politicamente na defesa dos mesmos privilégios de regulamentar a vida pública a partir de suas crenças, preceitos morais e interesses particulares.

Nos encontramos em um grave momento de retrocesso, no limiar da retomada da catequese financiada legalmente pelo Estado, caso o entendimento do STF se mantiver.

Recorrer ao caráter facultativo como uma solução democrática não resolve a problemática, só a amplia. O debate deveria estar centrado no conteúdo programático e não na facultatividade de sua oferta. Mesmo facultativo o Ensino religioso confessional vai contra a laicidade do Estado, contra a diversidade religiosa e contra a democracia.

Também o Ensino Religioso pluriconfessional é mais uma maneira de escamotear a questão. Mesmo que todas as religiões, no que se incluiria as de matriz africana, indígenas, politeístas, panteístas etc, gozassem de igual poder na disputa por este espaço de franco proselitismo, contanto que todas tivessem interesse em fazê-lo, não estariam contemplados os grupos não religiosos. O Ensino Religioso confessional nas escolas públicas sempre será, portanto, uma afronta ao Estado Democrático de Direito e laico.

A escola como espaço de aprendizagem dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade, rege-se a partir de uma ótica científica, ou seja por métodos considerados válidos. Só existe um caminho para que a presença das religiões no espaço público de aprendizagem não se caracterize em uma afronta aos interesses coletivos: estar submetida aos mesmos métodos que qualquer área do saber, ou seja como objeto de estudo.

Contudo, o Estado brasileiro valendo-se da nebulosidade que envolve a questão se recusa a regulamentar o estudo das religiões,  atribuindo-lhe os parâmetros da cientificidade, esquivando-se dessa forma do confronto com o poderio religioso que é também poder político e econômico.

A ausência de regulamentação favorece esta presença dissimulada e livre da religião e a dificuldade de combatê-la. Além da presença oficial pelo Ensino Religioso, a religião se faz presente nos espaços públicos de ensino por meio de  objetos e imagens religiosas que “ornamentam” distintos ambientes, por meio de conteúdos que afirmam o discurso religioso como orações e atividades referentes a feriados religiosos. Para além do espaço escolar a interferência religiosa permeia ainda leis e conteúdos educacionais como é o caso do embargo do kit anti- homofobia, a retirada da equidade de gênero como meta do Plano Nacional de Educação e agora a declarada permissão da confessionalidade como conteúdo das aulas de Ensino Religioso.

A negação da presença da religião dentro do espaço público de ensino sob qualquer forma, por outro lado, não tem contribuído a uma reflexão profunda acerca de suas complexas relações, é um brado inaudível em meio a tanto obscurantismo.

Enquanto se tenta, inutilmente, limitar as religiões ao  território privado, os poderes religiosos conservadores vem dominando a cena pública com a ocupação direta no legislativo, interferência notável no executivo e judiciário, fazendo valer seus privilégios e recolhendo-se ao seu domínio privado quando lhe convém. Exemplo disso é a isenção de impostos, a utilização de espaços de culto para campanhas eleitorais e  a concessão de canais de comunicação.

É preciso reconhecer que, gostemos ou não, as religiões, por essência políticas, fazem parte do público e tem sim um espaço dentro da arena democrática, por isso mesmo devem estar submetidas às regras próprias desta arena da mesma forma que qualquer outra instituição ou indivíduo.

Por fim nos cabe ainda a reflexão sobre os motivos que levam a educação pública a ser tomada como cavalo de batalha para o ativismo conservador. O que está por trás dos interesses em transformar salas de aula em púlpitos religiosos e “apolíticos”? Salta aos olhos o paradoxo conservador: enquanto o movimento Escola Sem Partido afirma categoricamente que a/o professor/a como agente público não pode imprimir sua opinião em sua prática docente, os mesmos defensores acolhem com júbilo que professores possam manifestar e ensinar sua fé.

Para nós que partimos de uma perspectiva democrática e laica, cabe enfrentar essas complexas questões, desprendendo-nos das margens seguras que têm nos guiado até agora e adentrar este terreno movediço, ainda que com passos trôpegos sentido ao seu núcleo. Pois se não nos dispormos a caminharmos com nossas próprias pernas, seremos empurrados e nos perderemos em seus caminhos labirínticos.

Gisele Pereira, historiadora e cientista da religião, professora do Ensino Básico; integrante da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir.

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