(Folha de S. Paulo, 24/02/2015) Apenas uma mulher foi premiada com o Oscar de direção em 87 anos. No ano passado, só 4% dos filmes americanos foram dirigidos por mulheres –produtores de Hollywood preferem homens para pilotar um filme.
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Latinos e negros continuam ausentes como protagonistas. O primeiro longa de ficção sobre Martin Luther King (1929-1968), “Selma”, precisou de dinheiro francês e do apoio da bilionária Oprah Winfrey para chegar às telas.
E galãs gays, alguns na primeira fila da cerimônia, são instruídos por empresários e agentes a jamais sair do armário para não perder papéis e cachês.
Os discursos engajados e emocionados de vários premiados no domingo (22) à noite foram um raro desabafo em uma indústria que se arrisca cada vez menos e que permitiu um êxodo de talentos rumo às séries de TV.
Vários assuntos na pauta do país ganharam a tribuna do horário nobre: racismo, encarceramento da população negra, suicídios, homofobia, desigualdade salarial entre gêneros e reforma imigratória. Tudo que não tem espaço para ser discutido em filmes de super-heróis, sequências de velhos sucessos ou superproduções cheias de explosões e tiros.
AMÉRICA PROFUNDA
Atores e atrizes, que não se limitaram a agradecer suas famílias e equipes, perceberam uma virada cultural em curso nos EUA.
Na semana passada, o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, criticou o presidente Obama por “não amar a América” e “sempre criticar o país quando pode, mais do que qualquer outro presidente”.
Ser crítico com os EUA, depois de uma década de patriotismo estridente e de “ou você está conosco ou contra nós”, voltou a ser tolerado pelo establishment.
Há apenas uma década, uma das atrizes americanas mais ativistas, Susan Sarandon, não fez nenhum comentário político ao apresentar uma das premiações. O diretor Michael Moore, ao ganhar seu Oscar, foi vaiado ao criticar a guerra do Iraque.
Os ventos mudaram. Boa parte da plateia aplaudiu Laura Poitras ao discursar sobre Edward Snowden e seu premiado “Citizenfour”. Agora são os conservadores, como Clint Eastwood, que ficam calados com cara emburrada na plateia.
Mas apesar dos discursos ativistas, a Academia de Cinema precisou dissimular a falta de diversidade em seus quadros. Dos 20 indicados a prêmios de interpretação protagonistas ou coadjuvantes, todos eram brancos.
Sua presidente é uma mulher negra, assim como diversas atrizes que foram convidadas a apresentar prêmios (nenhuma indicada).
O mestre de cerimônias, o ator Neil Patrick Harris, foi o único ator abertamente gay no palco.
Ainda assim, Hollywood manteve sua imagem de “progressista” e muito à esquerda do país como um todo. Para a América profunda, das cidades pequenas e do interior, o Oscar é a reunião da esquerda caviar, com seus vestidos milionários e discursos engajados.
Longe dos troféus, é “Sniper Americano” que leva aplausos nas salas de cinema, fatura bilheteria recorde e faz a alegria da indústria. Fora dos discursos, o engajamento ainda está nas margens.
Raul Juste Lores
Acesse o PDF: Discursos do Oscar contrastam com Hollywood conservadora (Folha de S. Paulo, 24/02/2015)