Uma das funcionárias do Distrito Sanitário Especial Indígena afirma que foi coagida ao sexo sob ameaças de perder o emprego. Advogada acusa coordenador de acobertar casos
(AzMina, 19/07/2017 – acesse no site de origem)
O episódio começou há cerca de um mês, em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Mas, para a advogada indígena Fernanda Kaingang, ele é apenas a continuação de uma história que perdura há séculos: “As mulheres indígenas têm sido vítimas de todo tipo de crime sexual desde o descobrimento e invasão de nosso país”, diz, enquanto sua voz vai subindo de tom e os soluços vão tomando conta da garganta.
Fernanda é a advogada de um grupo de mulheres da etnia Kaingang, que tem denunciado, desde o começo de junho, casos sistemáticos de assédio sexual contra trabalhadoras do Sistema Único de Saúde (SUS) responsáveis por atender indígenas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Como os acusados não foram afastados do cargo até hoje, as mulheres têm que trabalhar diariamente com os homens que acusam de agressão.
A auxiliar de saúde bucal A.K., 30 anos, foi uma das primeiras mulheres a falar publicamente sobre as acusações de abusos. Ela conta que após meses de assédio por parte de um dos assessores pessoais do coordenador da Saúde Indígena da região, ela começou a ter medo de ficar sozinha em sua sala de trabalho. “Ele dizia que queria ficar comigo, eu dizia que não e ele insistia. Chegou até a me oferecer R$ 3 mil em dinheiro”, afirma. “Ele então conseguiu meu telefone. Troquei de chip várias vezes e ele sempre arrumava o número novo. Ele dizia que, como mandava, podia colocar quem ele quisesse pra trabalhar ali e também demitir.”
Com medo de perder o emprego, A.K. afirma que acabou cedendo à violência sexual.
“Eu tive medo. Tenho quatro filhos para sustentar e não podia perder aquele emprego. Eu estudei pra trabalhar, eu tinha direito de estar ali!”.
O fim do silêncio veio pela força do grupo. Em 7 de junho deste ano, a cacique Angela Inácio Braga reuniu A.K e outras mulheres para denunciar os casos oficialmente à polícia. Elas registraram um boletim de ocorrência junto à Delegacia da Policia Federal de Passo Fundo, no qual afirmam ter sofrido ameaças de perder o emprego e ataques físicos. Acrescentavam que havia se tornado insustentável seguir trabalhando no local e exigiam que os acusados fossem afastados dos cargos enquanto seguissem as investigações, o que, segundo elas, não aconteceu.
Um mês após as denúncias e sem resposta do poder público, a cacique Angela, a advogada Fernanda e outros indígenas foram a Brasília exigir que o Ministério da Saúde afastasse do cargo o coordenador da Saúde Indígena da região sul, Gaspar Paschoal, que acusam de tentar acobertar os casos. Voltaram para casa insatisfeitos.
“No começo, Gaspar prometeu às lideranças indígenas que afastaria os acusados. Nunca fez isso. Logo entendemos o porquê: veio a nosso conhecimento que ele mesmo era acusado de assédio por uma psicóloga que havia rompido um relacionamento com ele”, conta Fernanda. “Como podemos esperar que um assediador coíba casos de assédio?”
Gaspar é acusado de assédio moral e sexual por duas funcionárias da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Ministério da Saúde. A profissional de saúde A.M, 26 anos, afirma que Gaspar chegou a oferecer cargos de chefia para que ela continuasse saindo com ele, o que ela rejeitou. “Toda vez que vejo o Gaspar, ele tenta me seduzir com gestos ou com palavras. Relatei isso para a Polícia Federal, para a equipe da Sesai de Brasília e para o Ministério Público Federal e nada foi feito pra garantir a nossa segurança. Ao contrário, eu e minhas colegas fomos agredidas verbalmente em nosso local de trabalho por pessoas que apoiam a gestão de Gaspar – e só não fomos linchadas, certo dia, porque saímos escoltadas pela polícia”, diz a indígena. “Estamos com medo e não sabemos mais a quem recorrer!”
Outro lado
Questionado sobre o caso, o Ministério da Saúde confirmou, em nota, que os acusados não foram retirados de seus postos. Justificou-se dizendo que “mediante a Lei 8.112/90, que rege o funcionalismo público, o afastamento do profissional só pode ser feito a partir da abertura de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), que ainda não foi instaurado”. “Porém, a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) assegura que assim que algum tipo de denúncia sobre o tema for apresentada ao Ministério Público Federal (MPF), imediatamente afastará os responsáveis”, acrescentou.
Para Fernanda, um afastamento provisório deveria ser considerado, já que as mulheres seguem sofrendo ameaças diárias por terem feito a denúncia. “A Sesai deveria tomar medidas de proteção às vítimas e determinar o afastamento dos acusados de assédio, incluindo o coordenador Gaspar, mas persiste em proteger os acusados.”
Gaspar foi procurado pela redação d’AzMina e respondeu por intermédio de nota. Disse ter participado de uma reunião com os indígenas, com o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena e com a Procuradoria do Ministério Público Federal na Fundação Nacional do Índio (Funai) de Passo Fundo e escutado a todas as denúncias. Afirmou, ainda, que “tomou as providências administrativas cabíveis, enviando as informações às autoridades competentes.” Ele não quis comentar as acusações feitas diretamente contra ele.
João Rodrigues Neto, escrivão da delegacia de Passo Fundo responsável pelo caso, afirmou à reportagem d’AzMina que o depoimento das vítimas está marcado para o dia 31 de agosto, antes do qual não é possível enviar uma denúncia oficial ao MPF. Ele reconhece que o prazo limite para a escuta das indígenas, 11 de agosto, foi desrespeitado, mas justifica que isso ocorreu porque o delegado responsável, Eduardo Brum, está em viagem a trabalho. Segundo ele, será solicitada uma extensão do prazo. “Se as vítimas sentirem-se ameaçadas, podem pedir à Justiça uma medida protetiva. Mas essas medidas são fornecidas por juízes e não pela polícia”, completou.
Enquanto suas clientes aguardam, literalmente, na sala com o acusado de agressão, a advogada Fernanda ecoa sua reclamação: “Meu Deus, em que século nós vivemos? Em que país nós vivemos, em que as pessoas que são colocadas para cuidar da saúde são acusadas de assédio e estupro e ainda nos dizem que somos ‘só uma minoria’?”.
Nana Queiroz