(Folha de S.Paulo, 26/09/2015) Caso o ritmo recente de queda da desigualdade entre homens e mulheres no Brasil se mantivesse, elas ganhariam o mesmo que eles em 2085.
Ocupariam 51% —a proporção pela qual respondem na população brasileira— dos cargos de diretoria executiva em 2126. E essa parcela dos cargos de alta gestão em geral em 2213.
Atingiriam essa cota das vagas do Senado em 2083. Nas Câmaras Municipais, em 2160. E na Câmara dos Deputados, em 2254.
Essas projeções, feitas pela reportagem, não são uma previsão do futuro. Usam regressões lineares, equações que estimam o valor esperado de um indicador com base no ritmo anterior.
Ou seja, não consideram mudanças no ambiente, como a criação ou extinção de leis de cotas, que podem acelerar ou desacelerar esse ritmo.
Elas servem, no entanto, para visualizar o ritmo de queda de desigualdade no país nos últimos anos.
E em alguns espaços, como os cargos em conselhos gestores, o topo da gestão de grandes empresas, a participação das mulheres está estagnada há anos.
“Isso quer dizer que, no Brasil, com base nos dados dos últimos 15 anos, se tudo continuar como está, nem em 120, 200 ou 300 anos a situação mudará nos conselhos”, diz Angela Donaggio, pesquisadora da FGV.
A montagem fotográfica que abre essa matéria foi feita em um dia de protestos por aumento salarial na avenida Paulista. Veja abaixo nove pontos que ajudam a entender o tamanho e a persistência da desigualdade entre homens e mulheres no Brasil —e por que elas têm mais motivos para protestar.
1- Fim da diferença salarial: 2085
Segundo dados do Censo coletados pelo IBGE, as mulheres ganhavam 46,9% a menos do que os homens em 1980, diferença que caiu para 29% em 2010.
Apesar dessa queda, repare como a diferença entre as barras que representam cada um dos Censos também vem caindo.
Isso quer dizer que o ritmo da mudança vem se desacelerando. Dados mais recentes da PME (Pesquisa Mensal de Emprego) realizada em seis regiões metropolitanas pelo IBGE apontam, contudo, para uma continuidade da redução em anos recentes.
É com base nos cálculos feitos com os dados mensais de 2002 até junho deste ano que se chega à projeção de queda da igualdade em 2085.
2- Dúvidas sobre a queda da desigualdade
O tamanho da diferença e o seu ritmo de queda não são, porém, unanimidade entre as pesquisas.
Dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) não têm apontado uma tendência sustentada de queda na desigualdade nas capitais pesquisadas, segundo a economista da instituição, Lúcia dos Santos Garcia.
Homens ganhavam 21,82% a mais que mulheres em 2000 em São Paulo. Em 2003, a diferença caiu para 17,05%, antes de voltar a subir até 2005, ter uma nova série de anos com altas e quedas e chegar em 2014 a 18,29%.
O mesmo movimento de ziguezague ocorreu no período em todas as regiões metropolitanas pesquisadas.
De acordo com a pesquisadora, no caso de São Paulo a melhora recente da desigualdade não responde a uma tendência geral de mais igualdade, mas a uma melhora no setor público e de serviços, onde elas têm forte presença, e a uma piora da indústria, onde os homens dominam.
Isso significa que, em grande medida, a queda da desigualdade não responde a uma melhora da situação da mulher, mas à piora da situação dos homens.
A economista avalia que, caso as exportações e a competitividade da indústria aumentem —como se espera que aconteça com a desvalorização do real—, a capital paulista viveria uma nova alta da desigualdade.
Segundo a pesquisadora, o fato de que a economia de São Paulo tem mais indústrias, onde homens predominam, faz com que ela tenha a maior diferença de renda das regiões metropolitanas pesquisadas.
Além disso, grandes empresas e multinacionais significam altos salários que, via de regra, são dos homens (veja item 7). Isso contribui para que São Paulo seja muito mais desigual entre homens e mulheres do que, por exemplo, Salvador, avalia Regina Madalozzo, especialista em economia de gênero do Insper.
Outro indicador que não tem mostrado sinais de avanço é o da diferença entre homens e mulheres quando se consideram salários de admissão —aquele registrado quando a pessoa entra na empresa.
Ela subiu de 9% há dez anos para 13,7% em 2015, na média dos primeiros semestres de cada ano.
De acordo com Madalozzo, esse dado é preocupante, porque recuperar a diferença no decorrer da carreira é difícil.
“O salário da promoção, ou da mudança de empresa serão baseados nesse valor. É provável que a diferença se amplie ao longo do tempo.”
3- Empregabilidade menor
Um dos motivos pelos quais a mulher entra nas empresas com salários menores é porque está em condições piores para negociar. No Brasil inteiro, é mais difícil para uma mulher conseguir emprego do que para um homem, como mostram as taxas de desemprego por região.
Segundo Madalozzo, “o mercado de trabalho foi constituído para ser masculino. Trabalhar 7 dias por semana, 20 horas por dia era possível para o homem que tinha uma mulher que cuidava das coisas dele”.
4- Jornada na empresa e em casa
Com a entrada no mercado de trabalho, elas passaram a acumular a responsabilidade de cuidar da casa, o que lhes deixa menos tempo para a carreira (veja item 7).
O gráfico abaixo mostra como, em média, as mulheres gastam menos tempo no trabalho do que os homens, enquanto o contrário acontece quando se consideram as atividades domésticas.
No fim das contas, são elas que trabalham mais.
5- Melhor educadas, pior pagas
Essa diferença entre homens e mulheres resiste mesmo com a queda na taxa de analfabetismo delas, que se tornou menor que a dos homens na virada para os anos 1990.
Segundo Bila Sorj, professora de sociologia da UFRJ, as mulheres investem mais na própria educação em um esforço para fazer o seu tempo trabalhado resultar em uma renda maior, já que tendem a ter que gastar mais horas em tarefas não remuneradas, como cuidar dos filhos ou planejar o jantar.
Isso faz com que também tenham uma média maior de anos de estudo.
E a maior proporção de formados no ensino superior, segundo dados de 2013 do IBGE.
Na opinião de Sorj, “seria de se esperar que a desigualdade se inverteria com o aumento da educação feminina, mas há uma resistência muito grande. As empresas sabem que, por serem ou poderem se tornar mães, as chances de mulheres conseguirem outro emprego são menores do que as dos homens, o que torna mais difícil para uma mulher conseguir um aumento”.
6- Quanto maior o nível de ensino, maior a diferença de salários
Aumentando sua qualificação, elas podem até garantir uma renda maior, mas isso não quer dizer um valor equivalente ao recebido por homens na mesma situação.
Uma educação melhor também significa horizontes de carreira mais amplos —e uma disparidade maior dentro desses horizontes ampliados.
Quanto mais alto o nível de educação, maior a desigualdade de renda entre homens e mulheres no Brasil.
Segundo Madalozzo, do Insper, uma das explicações para a diferença é o fato de que mulheres ainda são associadas a carreiras com remuneração menor, como professoras de primário, enquanto homens tendem a ser ligados a carreiras que pagam mais, como a de engenheiro.
7- Igualdade em cargos de diretoria executiva só aconteceria em 2126
Outra explicação para a diferença crescente conforme sobe o grau de instrução é o fato de que os altos cargos de chefia são, via de regra, ocupados por homens.
A chegada da mulher ao topo da estrutura corporativa, onde ficam os melhores salários, ainda é um acontecimento extremamente raro.
Segundo levantamento do GPDG (Grupo de Pesquisas em Direito e Gênero) da FGV realizado até 2012 com 480 empresas listadas na Bolsa, elas ocupavam 7,5% das cadeiras dos conselhos de administração.
São os membros desses espaços que traçam as diretrizes, fiscalizam as ações dos executivos e dão a palavra final sobre grandes negócios. O Brasil fica em 27º lugar em igualdade nessa esfera de poder, em uma lista de 44 países compilada pela organização americana Catalyst.
Segundo dados do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) de 2011, se desconsideradas herdeiras —que são alçadas a cargos de liderança em grande medida pelo parentesco— a proporção delas nos conselhos cai para 4% (para aquele ano, a FGV apontava participação de 7,4%).
“Diversas pesquisas no mundo todo mostram que a probabilidade é de que uma mulher conselheira tenha muito mais experiência do que um homem. Ela tem que provar muito mais que merece estar ali”, diz Angela Donaggio uma das integrantes do GPDG.
Se mantido o ritmo de 1997 a 2012, a igualdade entre cargos de direção executiva só aconteceria em 2126. Os ocupantes desses postos são os responsáveis por setores inteiros de grandes empresas —o diretor executivo de RH está no topo deste setor, por exemplo.
Quem deseja atingir esses espaços precisa concentrar esforços na carreira durante o período que vai dos 30 aos 40 anos, época em que muitas das mulheres têm que decidir se desejam ter filhos.
Divididas entre carreira e a maternidade, muitas escolhem se dedicar integralmente a serem mães, ou diminuem o tempo que destinam ao trabalho.
Aquelas horas extras para finalizar um projeto crucial que garantiria visibilidade passam a ser empregadas na família. Além disso, a mera expectativa de que passariam a focar nos filhos faz com que as empresas passem a elas responsabilidades menores, segundo estudo da Harvard Business School de 2014.
Isso faz com que, frequentemente, empaquem em cargos de gestão média.
Principalmente nos casos de conselhos gestores, entram em jogo indicações, que vêm com contatos e política, e não só mérito.
Da mesma forma que é mais difícil para uma mulher participar da mesa de bar ou da pelada de domingo com grupos de homens, também é um desafio maior para elas participar dos clubes masculinos de poder dentro das empresas.
O projeto de lei 112/2010, da senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE), quer mudar o quadro obrigando que 40% das vagas nesses conselhos em empresas estatais sejam ocupadas por mulheres de forma progressiva até 2024.
“Empresas de controle estatal são as que têm a menor chance de ter 20% ou mais mulheres nos cargos de conselho”, diz Donaggio.
A proposta aguarda votação pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. Mas, segundo a professora Ligia Sica, que também coordena o GPDG, o fato de que não prevê a aplicação de sanções no caso de descumprimento, pode colocar sua efetividade sob risco.
8- No ritmo atual, desigualdade nas Câmaras Municipais dura até 2160…
No campo político brasileiro, o avanço da participação feminina também caminha a passos lentos. Se fosse mantido o mesmo ritmo observado nas Câmaras Municipais entre 1992 e 2012, a igualdade seja atingida apenas em 2160.
No pleito de 2012, elas atingiram a marca de 13,3% do total dos assentos nas Câmaras municipais, um crescimento de 1,2 ponto percentual na comparação com as eleições de 2010.
A alta em 2012 foi beneficiada por uma mudança de 2009 na lei que determina cotas para mulheres entre os candidatos, que mudou de “preencher” para “reservar” o verbo empregado sobre a exigência mínima de candidaturas femininas.
Antes, existia a possibilidade de que os partidos “reservassem” vagas para candidatas, mas, na hora das inscrições, colocassem homens no lugar. Com a mudança, a redação ficou assim:
“Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.
A alteração contribuiu para que o número de candidaturas de donas de casa (99,73%, mulheres) no primeiro turno para vereador tivesse uma explosão nas últimas eleições municipais.
Foram 13.302 a mais, ou uma variação de 140%, perdendo em números absolutos apenas para o aumento de candidaturas de servidores municipais (alta de 56%).
9-…até 2083 no Senado e 2254 na Câmara dos Deputados
A proporção de mulheres avançou pouco também na Câmara dos Deputados e no Senado. Se considerado o ritmo adotado de 1999 a 2015, a paridade seria atingida em 2083 no senado, e, se considerados o de 1986 a 2014, em 2254 pela Câmara.
Na Câmara dos Deputados, elas não chegam a 10% do total das vagas, apesar do aumento de 45 para 51 mulheres eleitas nas duas últimas legislaturas.
No Senado, a situação é um pouco mais igualitária, com as mulheres ocupando 13 das 81 cadeiras, ou 16% do total.
Segundo Luciana de Oliveira Ramos, pesquisadora do GPGD, a lei de cotas para as candidaturas tem impacto limitado, por não exigir uma eleição mínima de mulheres, ou que se destine recursos para suas campanhas.
Além disso, parte das candidaturas femininas são retiradas após a fiscalização do Tribunal Superior Eleitoral contabilizá-las, diz. Ou seja, tratam-se de candidaturas-fantasma.
Encontra-se em tramitação na Câmara uma proposta de emenda à Constituição que estabeleceria cotas para mulheres na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras municipais.
10% das vagas ficariam disponíveis para elas nas eleições de 2016, 12% no pleito de 2018 e 16% nas eleições de 2020.
Caso o percentual mínimo não fosse atingido, as vagas seriam preenchidas pelas candidatas com a maior votação nominal individual entre os partidos.
André Cabette Fábio
Acesse no site de origem: Dois séculos separam mulheres e homens da igualdade no Brasil (Folha de S.Paulo, 26/09/2015)