30 mulheres respondem por crime de autoaborto em SP; médico é quem denuncia

28 de setembro, 2017

Desde 2014, Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, percorre delegacias e vasculha a Secretaria de Segurança Pública atrás de casos de mulheres acusadas pelo Estado por autoaborto. “Provocar aborto em si mesma”, crime tipificado no artigo 124 do Código Penal.

No começo deste ano, ela acabou encontrando no Tribunal de Justiça o que procurava: 30 inquéritos que se transformaram em ação penal. “Estamos falando de processos que já tiveram denúncia por parte do Ministério Público e estão em curso, aguardando o julgamento”, explica.

Quem é essa mulher?

Segundo as ações penais reunidas pela Defensoria Pública, a mulher processada por autoaborto no estado de São Paulo tem de 16 a 41 anos, é, em sua maioria, solteira, está desempregada ou tem um emprego no comércio e conta com assistência jurídica gratuita em seu processo. Mais da metade delas já tem filhos.

Quem denuncia?

J.M.B., 27 anos. Foi denunciada pelo médico plantonista que a atendeu quando ela procurou o pronto-socorro, depois de introduzir dois comprimidos de Misoprostol (abortivo popularmente conhecido como Cytotec) na vagina.

L.S.L., 32 anos, mãe de quatro filhos. Denunciada pela enfermeira que a atendeu e confiscou os comprimidos de Cytotec que ficaram “sob a guarda do hospital”.

C.S.S., 38 anos, mãe de dois. Foi denunciada pelo hospital onde foi socorrida depois de ter tomado um “chá abortivo” horas antes de dar entrada na emergência.

I.C.B., 19 anos. Foi denunciada pelo médico que a socorreu, que retirou de sua vagina partes do comprimido de Cytotec e entregou como prova para a polícia, para quem ele ligou fazendo a denúncia.

A acusação feita por médicos, enfermeiros e outros profissionais dos serviços de saúde onde as mulheres procuram assistência é a mais comum nos 30 casos analisados por Ana Rita. No mais, ainda há a família como denunciante (um padrasto e, em outro caso, a mãe da indiciada), “anônimos” e “feto localizado”, que é quando, em lugares remotos e sem sistema de esgoto, o feto é encontrado em um córrego “a céu aberto”, por exemplo.

Autoaborto é crime inconstitucional?

Em novembro de 2016, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal reconheceu, por maioria de votos, a inconstitucionalidade de criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação. Conforme a decisão, a criminalização nesse período fere direitos sexuais e reprodutivos, o direito à autonomia, a integridade física e psíquica, bem como o direito à igualdade. Ana Rita vai além, e afirma que a Constituição Federal briga com o Código Penal [de 1940, promulgado durante a Ditadura Vargas no Brasil e que tipifica o crime de autoaborto]. “A ideia da proteção do feto promove um conflito de direitos fundamentais, uma vez que os do feto se sobrepõem aos das mulheres.”

Segundo ela, há, ainda, a inconvencionalidade do crime de autoaborto. Ou seja: a violação de convenções internacionais de direitos humanos ratificadas pelo Brasil. A criminalização do abortamento viola, por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Por último, a maioria dos 30 processos apresenta falta de provas ou a existência de evidências frágeis. O que, no jargão jurídico é chamado de falta de materialidade. “Abortos espontâneos são extremamente comuns, e um Cytotec de mercado ilegal não garante uma interrupção de gravidez eficaz, muito menos ‘chás’. É preciso provar, o que não tem acontecido. Mulheres estão respondendo processos baseados em um crime inconstitucional, argumentos ilegais e ausência de provas”, diz.

Quebra de sigilo médico

Outra forma de “prova ilegal”, de acordo com Ana Rita Prata, é quando é colhida na quebra do sigilo médico. “Esses profissionais depõem contra a mulher, outras vezes entregam documentos sigilosos, como o prontuário médico e restos de comprimido. Esse tipo de indício não deveria ser considerado no processo”, diz ela. Os Conselhos profissionais, como o Conselho Federal de Medicina, condenam esse comportamento. “Mas, na maioria dos 30 casos, é esse o tipo de prova que subsidia a denúncia do Ministério Público.”

Quando uma mulher é processada pelo Ministério Público Estadual pelo crime de autoaborto, o estigma e o mal-estar são marcas permanentes, afirma ela. “É uma violência institucional pesadíssima. Existe o pavor da prisão em flagrante, quando ela acontece, mas existe, ainda, todo o medo desse tipo de ação penal. Depois, há o antecedente criminal.”

30 habeas corpus

Com os processos em mãos, a intenção de Ana Rita é acionar o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para que haja “um controle de constitucionalidade e de convencionalidade”. Ela fará isso através de 30 habeas corpus, protocolados a partir de hoje, que alegam ilicitude de provas e falta de materialidade dos crimes, e pedem o arquivamento das ações penais. Para a Defensoria, a ação exige uma mudança no que diz respeito ao tratamento jurídico do aborto no Brasil. “O Estado precisa ser responsabilizado pelo dano irresponsável que tem feito à vida dessas mulheres. Esses processos devem ser trancados”, completa Ana Rita.

Por Natacha Cortêz

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