Aborto é parte do direito ao planejamento reprodutivo. São milhares de mulheres em risco para o adoecimento, quase dez mil com bebês notificados para microcefalia
(Folha de S. Paulo, 13/09/2016 – Acesse no site de origem)
Jout-Jout ensaiou uma boa forma de conversar sobre aborto – desarrumando os clichês. Em um debate recente pôs a técnica em prática e a conversa foi animada: “mulher que faz aborto é isso ou aquilo”, “ela sabe fazer, mas não quer criar”, “por que ela não dá a criança para adoção?”, “aborto deixa a mulher louca”, e por aí foi. O vídeo está no canal do Youtube da revista feminista Azmina. Sem o encanto de Jout-Jout, pegarei de empréstimo a técnica dos clichês – desarrumarei os argumentos dos que assombram a conversa sobre interrupção da gestação em tempos de epidemia de zika no Brasil. O tema virou manchete de jornal depois que Rodrigo Janot, procurador-geral da república, emitiu parecer favorável à ação apresentada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) ao Supremo Tribunal Federal. A ação será ainda julgada pela suprema corte, sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia.
Antes dos clichês
A ação dos defensores públicos não é sobre aborto, mas sobre o direito ao planejamento familiar, com especial cuidado às mulheres e às crianças. Há uma epidemia em curso – em 1o de fevereiro, a Organização Mundial de Saúde declarou situação de emergência global para os efeitos do vírus zika na gravidez. O Brasil, e mais especificamente, o nordeste do país, é o epicentro da epidemia global, uma história pouco conhecida, é verdade. Acabo de publicar o livro “Zika: do Sertão nordestino à ameaça global”, uma tentativa de biografar esse silêncio. São milhares de mulheres em risco para o adoecimento, quase dez mil delas já tiveram seus recém-nascidos notificados para os efeitos do vírus zika no desenvolvimento. Elas são nordestinas, pobres e negras. Para elas, se pede o mínimo existencial para a vida digna: de acesso à informação até transporte para levar o filho aos centros de saúde.
Clichê 1:
Os defensores públicos querem legalizar o aborto no Brasil
A ação apresentada ao STF não fala em aborto, mas em interrupção da gestação. E não fala só disso: pede informação sobre os riscos e efeitos do vírus zika nas escolas e nos hospitais; pede ampliação dos métodos de planejamento familiar, com a inclusão do repelente contra mosquitos para as mulheres que desejarem ter filhos durante a epidemia; pede o direito – e não o dever – à interrupção da gestação se a mulher adoecida com vírus zika estiver em sofrimento mental pela tragédia da epidemia; pede acesso aos serviços de saúde fundamentais ao cuidado do filho afetado pelo zika em uma distância razoável de 50 km de sua casa ou transporte público para deslocamentos longos; pede assistência social universal para todas as crianças afetadas pelo zika, isto é, sem recorte de miserabilidade para as beneficiárias. Ou seja, não há nada disso de legalização do aborto na ação – é um pedido urgente de proteção à maternidade e à infância.
Clichê 2:
Os defensores públicos querem matar as crianças com microcefalia
Este não é um clichê, mas uma grave mentira. O pedido dos defensores é o de garantir direitos fundamentais violados às crianças nascidas com a síndrome congênita do zika, comumente descrita como “microcefalia”. Primeiro, é um erro descrever a síndrome como microcefalia, pois a redução do tamanho da cabeça do recém-nascido é só um dos sinais da síndrome; há casos de recém-nascidos afetados pelo vírus sem o sintoma da microcefalia. Segundo, porque não há nada de homicídio na ação, mas garantia de vida digna. Sem acesso aos serviços de saúde ou à renda familiar para o cuidado da criança não há como sobreviver dignamente. E o mais importante: os defensores não querem autoridade sobre as escolhas familiares, somente pedem ao Supremo Tribunal Federal a garantia de direitos violados pela população que é assistida pelas defensorias públicas nos estados – as famílias pobres.
Clichê 3:
Os defensores públicos discriminam as crianças com deficiência
Ao contrário, a ação pede a garantia de direitos fundamentais das crianças com deficiência no Brasil: uma delas, e muito importante para as famílias onde a epidemia está concentrada, é a de proteção social pelo acesso universal aos benefícios de transferência de renda. Somente com renda familiar garantia, as famílias poderão cuidar de suas crianças dependentes, poderão se mover para hospitais e tratamentos, poderão se ausentar do mundo do trabalho. É preciso localizar socialmente a epidemia: não há isso de terceirização do cuidado de crianças por creches ou empregadas domésticas para mulheres pobres. Elas são, historicamente, as cuidadoras das crianças de famílias da elite, e agora chamadas integralmente para o cuidado de um filho com múltiplas dependências. Raras são as mulheres com crianças afetadas pelo zika que retornaram ao mundo do trabalho fora da casa. Não há discriminação pela deficiência, mas proteção social às crianças com deficiência, com atenção redobrada nos efeitos da epidemia entre as mulheres jovens.
Clichê 4:
Os defensores públicos querem abortar os fetos com microcefalia
O direito à interrupção da gestação se a mulher estiver com zika é por razões de saúde mental. O aborto no Brasil é um crime, mas o pedido dos defensores públicos é para reconhecer que a epidemia lança um estado de necessidade às mulheres e a interrupção da gestação nestes casos é para proteger sua saúde mental. Não há um dever de interrupção da gestação, mas a garantia de um direito. Assim como a lei penal reconhece em caso de estupro: a mulher sofreu uma grave violência, a ela é concedido o direito de interromper a gestação se esta for sua vontade. Não há aborto por microcefalia no feto por duas razões: a) não é o diagnóstico de singularidades no feto que fundamenta o pedido dos defensores públicos para o direito à interrupção da gestação, mas a saúde mental das mulheres em risco pela tragédia da epidemia; b) uma mulher grávida e adoecida pelo vírus zika pode ou não levar à transmissão vertical da doença para o feto, isto é, não se sabe em quantos casos o zika atravessa a placenta e altera o desenvolvimento. Ou seja, não são as singularidades do feto que justificam o direito da mulher à interrupção da gestação, mas, como no estupro, o sofrimento mental por uma situação dramática de uma epidemia sem precedentes no mundo.
Clichê 5
Os defensores públicos são eugênicos
Eugenia é uma palavra forte, e se dirigida às mulheres pobres, nordestinas e negras em risco de adoecimento nas terras do zika é um desrespeito, senão uma grave discriminação. A acusação não é contra os defensores públicos, mas contra as mulheres, pois o direito à interrupção da gestação deve ser escolha íntima e privada da mulher. Não há eugenia nesta escolha e por, pelo menos, três razões: a) uma mulher adoecida pelo zika não sabe se seu feto foi afetado pela doença; é seu sofrimento mental que é protegido pelo direito à interrupção da gestação. A situação é a mesma da interrupção da gestação em cada de estupro: não se pergunta à mulher características do feto para acolher sua vontade; b) uma mulher que interrompa a gestação por sofrimento mental toma uma decisão íntima sem qualquer repercussão para a vida das pessoas com deficiência no mundo. Não é uma bandeira pró-aborto, mas uma proteção à saúde de mulheres fragilizadas pela epidemia; c) uma mulher, solitária e individualmente, não é responsável pela discriminação pela deficiência ou mesmo por práticas eugênicas e totalitárias. O capacitismo, isto é, a discriminação pela deficiência é ideologia comum na vida social, mas não é no útero das mulheres que se alterará esse regime de dominação violenta. É preciso ouvir como as mulheres com deficiência apoiam esta ação. Feminismo e deficiência não se estranham moralmente, ao contrário: as mulheres com deficiência possuem uma longa história de resistência ao controle de seus corpos pela esterilização forçada, por exemplo, por isso ampliação de direitos reprodutivos é também nossa luta. Se há eugenia em curso é a que move o silêncio das elites sobre o que se passa nas terras do zika com mulheres há tempos ignoradas pelo Estado brasileiro.
* Debora Diniz é antropóloga, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, e uma das coordenadoras do Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia