A despenalização do aborto em Portugal trouxe mais acompanhamento, mais saúde e mais segurança

12 de fevereiro, 2020

Ao contrário do que anunciavam os arautos do fim do mundo, não só nada piorou, como estão a diminuir consistentemente, ano após ano, as interrupções voluntárias da gravidez. A despenalização, a 11 de fevereiro de 2007, trouxe sim mais acompanhamento, mais saúde e mais segurança. E mais planeamento familiar. 

(esquerda.net/Portugal, 12/02/2020 – acesse no site de origem)

A 11 de fevereiro de 2007, o “sim” à interrupção voluntária da gravidez (IVG) venceu o referendo com mais de 59% dos votos, permitindo acabar com o aborto clandestino e inseguro em Portugal.

Lembramo-nos bem de como os defensores do “não” antecipavam o descalabro: filas sem fim de mulheres à espera de abortar. O aborto vai transformar-se “como que num meio contraceptivo”, “não queremos o aborto banalizado”, propalava José Ribeiro e Castro, presidente do CDS, anunciando a loucura do “aborto livre”. Para Luís Rodrigues, deputado do PSD, e Marcelo Rebelo de Sousa(link is external), atual presidente da República, era mais do que certo: vai ser a “liberalização” total.

Ora, ao contrário do que anunciavam os arautos do fim do mundo, não só nada piorou, como estão a diminuir consistentemente, ano após ano, as IVG. A despenalização trouxe sim mais informação, mais acompanhamento, mais saúde e mais segurança. E mais planeamento familiar. Até 2008, o aborto clandestino era a terceira maior causa de morte das mulheres em Portugal. Desde 2012, não existiu uma única vítima mortal de um aborto clandestino. Também mais nenhuma mulher ou profissionais de saúde foram presos.

Número de abortos com “tendência decrescente consistente”

De acordo com Teresa Ventura, chefe de Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da Direção Geral de Saúde (DGS), e coautora do Relatório dos Registos das Interrupções da Gravidez 2018, “desde 2011, o número anual de IG [Interrupções de Gravidez] realizadas em Portugal tem apresentado uma tendência decrescente consistente”.

A responsável da DGS explicou ao esquerda.net que, entre 2011 e 2018, as IG por todos os motivos decresceram 24,2% – de 20.480 para 14.928 – e que as realizadas apenas por opção da mulher até às 10 semanas diminuíram 27,1%. “Entre 2017 e 2018, o total decresceu 3,8% e as IG apenas por opção da mulher até às 10 semanas decresceram 4%”, acrescentou, afirmando ainda que “os dados disponíveis publicados pelas instituições europeias indicam que o número de IG por 1000 nados-vivos em Portugal se situa abaixo da média europeia desde pelo menos 2015”.

Teresa Ventura assinalou ainda que, “entre 2014 e 2018, registou-se uma queda de aproximadamente 12% no número de IVGs em Portugal realizadas por opção da mulher” e que, “neste período, contudo, o número de nados-vivos (NVs) aumentou aproximadamente 6% (82167 para 87020)”, pelo que, “se o número de NVs for tomado como um proxy do número de gravidezes, a queda no número de IVGs não pode ser associada a diminuição do número de gravidezes”.

Número de IG por motivo | 2008 – 2018. Fonte: Relatório dos Registos das Interrupções da Gravidez 2018 da DGS.

92,6% optaram por método de contraceção após IG

Ana Campos, obstetra ginecologista recentemente reformada e ex-diretora clínica adjunta da Maternidade Alfredo da Costa, trabalhou na IVG desde a sua despenalização e continua a dar formação nesta área. A também ativista dos direitos das mulheres sinalizou que “uma das razões que poderá justificar a redução consistente nas interrupções depois de uma IVG é a prática contracetiva que se estabelece, sobretudo no aborto medicamentoso, onde existem aqueles pontos de diálogo na primeira consulta e na terceira consulta, que permitem que as mulheres tenham alta já com o método esclarecido, escolhido e colocado”, se for esse o caso.

Em declarações ao esquerda.net, Ana Campos destacou ainda o aumento de utilização de métodos de longa duração, o que “contraria a ideia, propalada pelo ‘não’ no referendo, de que as mulheres recorreriam a múltiplos abortos”.

Essa realidade é secundada por Teresa Ventura, que apontou que 92,6% das mulheres escolheram posteriormente à IG um método de contraceção e que, destas, 39,3% escolheu um de longa duração. A chefe de Divisão de Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da DGS avançou, inclusive, que, “na verdade, em 2018, uma larga maioria (aproxim. 70%) de mulheres afirmou nunca ter realizado IG antes”. “Das 14.928 IG que tiveram lugar em 2018, só em 273 casos a mulher já tinha realizado uma IG anterior no mesmo ano e, em 825 casos, tinha realizado uma IG anterior em 2017. Este grupo particular de 1.098 mulheres representa apenas 7,4% do total que efetuou IG em 2018”, continuou.

“Equipas estão cansadas e envelhecidas e vão precisar de ser substituídas”

Ao assinalarmos os 13 anos da despenalização da IVG existem, conforme enfatizou Ana Campos, “questões fundamentais com que vamos ter de nos deparar: problemas de acessibilidade, envolvimento dos técnicos, formação e investigação”.

A ex-diretora clínica adjunta da Maternidade Alfredo da Costa alertou que as equipas que trabalham com IVG “estão neste momento cansadas e envelhecidas e vão precisar de ser substituídas”. Ana Campos lembrou que, em hospitais como o de Santarém, deixaram de existir IVG e que em Beja o serviço é intermitente. Já o número de IVG realizadas nos Açores e Madeira é irrisório. Ao contrário do que acontece no Norte, com os dois grandes hospitais do Porto a fazerem IVG, em Lisboa três hospitais são objetores. As IVG realizam-se na Maternidade Alfredo da Costa, no Hospital Santa Maria, que chegou a fechar o serviço temporariamente, e no Hospital Beatriz Ângelo. Na margem sul, o Garcia de Orta só faz abortos médicos, enviando para a Clínica dos Arcos os abortos cirúrgicos. Ana Campos frisou que esta realidade põe em causa a equidade no acesso à IVG, apontando que existem mulheres que se deslocam a Espanha para acionar o processo.

“É preciso mudar de paradigma na prática da IG”

A obstetra ginecologista fez referência a estudos internacionais que apontam que a eficácia do aborto médico precoce realizado por enfermeiros é igual, senão superior, ao realizado por médicos, defendendo que é necessário responsabilizar os cuidados primários pela realização de abortos, com o encaminhamento das situações mais complexas e as IG cirúrgicas para os respetivos hospitais. “Nos próximos cinco anos, com a reforma dos profissionais, é preciso mudar de paradigma, fazendo a transição para que a IG seja feita em centros de saúde por enfermeiros e com o apoio médico necessário”, vincou.

Ana Campos salientou também que é possível facilitar as IG. No caso da IG cirúrgica, é desejável priorizar a anestesia local, “como é praticado a nível internacional”, o que acabará por facilitar o acesso ao aborto. Existe também a possibilidade, de acordo com a ex-diretora clínica adjunta da Maternidade Alfredo da Costa, de usar o Beta HCG, ou seja, recorrer a análises de sangue, em alternativa à ecografia de controlo pós aborto.

A importância da formação dos profissionais

Realizar cursos sobre saúde sexual e reprodutiva em alta escala e treinar situações e técnicas para mais profissionais estarem devidamente formados são outras das prioridades apontadas pela obstetra. Como também o é fazer investigação, “passar a escrito as particularidades da realidade portuguesa, que, apesar de ser um caso de sucesso, tem sido pouco divulgada”.

Conforme anunciou Teresa Ventura, “a DGS nomeou um grupo de trabalho para atualizar as orientações técnicas que já foram definidas em 2007, para definir modelos formativos para os diversos grupos profissionais e ainda para fazer um mapeamento atualizado dos serviços que prestam cuidados de saúde nesta área”. Este grupo “irá finalizar o seu trabalho no primeiro semestre deste ano e serão apresentados os resultados”, frisou.

A vulnerabilidade das leis e os ataques da direita

A “vulnerabilidade das leis”, que estão dependentes de fatores políticos, sociais e religiosos, é, segundo Ana Campos, um motivo de preocupação, até porque, face ao “peso crescente da extrema direita, não é possível garantir que, se essas forças tiverem outra expressão”, não haja uma mudança de rumo, como aconteceu na Polónia e Hungria e nos Estados Unidos, onde é cada vez mais difícil ter acesso à IVG. A verdade é que, em Portugal, durante o Governo de Passos Coelho, conseguimos perceber que “os governos de direita não descansam enquanto não puserem em causa as conquistas das mulheres e, neste caso, a lei da IVG”, rematou.

Por Mariana Carneiro
Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do trabalho

 

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