(Nexo, 17/06/2016) Em seu novo livro, os cientistas políticos Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel afirmam que as restrições no direito ao aborto correspondem a um déficit de cidadania para as mulheres
O direito ao aborto é condição necessária para o acesso pleno das mulheres à cidadania. Sua recusa é a expressão da permanência de um estatuto diferenciado para mulheres e homens, ainda quando muitas outras conquistas, sobretudo a partir das décadas iniciais do século XX, resultaram na igualdade formal entre os dois sexos. Elas e eles têm hoje, no Ocidente, direitos iguais a votar e a tomar parte da política, direitos iguais à propriedade e, ao menos formalmente, salários iguais por igual trabalho. Mas as restrições no direito ao aborto correspondem a um déficit de cidadania para as mulheres.
A decisão sobre realizar ou não um aborto incide diretamente sobre a integridade física e psíquica das mulheres. É sua condição de sujeito autônomo, de sujeito responsável por sua própria vida, que é colocada em questão quando as normas correntes retiram delas essa decisão. Motivações de caráter moral e religioso, que são também discutidas nos capítulos deste livro, são ativadas para justificar que cerca de metade da população – as mulheres – seja privada do direito básico a tomar decisões sobre o que se passa no seu corpo. A noção liberal de “propriedade de si”, importante na construção de sentidos para a individualidade e na determinação dos direitos civis no mundo moderno, permanece frágil diante de legislações que criminalizam o direito das mulheres ao aborto.
De uma perspectiva democrática, há inconsistências sérias se uma sociedade se orienta por normas que determinam a igualdade entre mulheres e homens como cidadãos em alguns âmbitos da vida social e política, mas chancela uma compreensão desigual e hierárquica da sua condição de agentes morais. É o que ocorre quando é retirada das mulheres uma decisão fundamental para o exercício efetivo da sua cidadania, assim como para a garantia de sua integridade individual e psíquica.
Desde os anos 1970, um número crescente de países passou a adotar legislações que permitem o aborto. Nas Américas, Estados Unidos, Canadá, Cuba, mais recentemente, Uruguai (caso discutido em um dos capítulos deste livro) e Cidade do México permitem o aborto. Na Europa, estão entre os paises em que é legal a realização do aborto Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Finlândia, Holanda, Inglaterra, Itália, Noruega, Portugal e Suécia. A lista inclui, como se vê, países em que é muito forte a influência da Igreja Católica, fato que, por vezes, é mobilizado para explicar o atraso da legislação brasileira. Mesmo na Ásia e na África, onde há, como na América Latina, maiores restrições no direito ao aborto, ele é permitido em países como Japão, China, Singapura, Coreia do Norte e África do Sul.
No Brasil, o aborto é ilegal. As exceções são os casos de risco de vida para a mulher e de gravidez resultante de estupro, ambas previstas na legislação desde o Código Penal de 1940; e, a partir de 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de má-formação fetal, como a anencefalia.
É importante lembrar que a ilegalidade não significa que as mulheres brasileiras não abortem. Elas abortam em condições inseguras, e essa insegurança é maior se são pobres. Por isso, há um componente de classe e racial na ilegalidade do aborto: são as mulheres pobres e negras as que estão sujeitas aos serviços mais precários. Cerca de um milhão de abortamentos clandestinos são realizados no país a cada ano, frequentemente em condições precárias, com as complicações decorrentes levando a mais de 200 mil internações hospitalares por ano. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde (2006) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que, no Brasil, a cada dois dias uma mulher morre ao realizar um aborto em condições inseguras e precárias.
Embora o problema se apresente de maneira aguda, colocando em risco as vidas das mulheres, afetando sua cidadania e comprometendo nossa democracia, os poucos avanços que foram realizados nas últimas décadas, como a garantia de atendimento hospitalar nos casos de aborto previstos na lei, estão hoje em risco.
Isso ocorre por um conjunto de fatores. De um lado, os movimentos feministas vêm fazendo escolhas que, embora possam ser reconhecidas como estratégicas, reduziram sua capacidade de capitanear o debate. Episódios como a retirada do tema do aborto do documento apresentado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher à Assembleia Nacional Constituinte em 1988 e o recuo em eleições recentes mostram que esses movimentos, sobretudo em sua atuação junto ao Estado, têm considerado válido reduzir a prioridade da luta pelo aborto em sua agenda, em nome de posições e garantias que seriam supostamente mais importantes em contextos determinados. O problema é que, no mesmo período, em especial entre o início dos anos 1990 e os dias atuais, o aborto ganhou prioridade crescente entre os grupos religiosos. Passou a ser uma das temáticas centrais na sua atuação no Congresso Nacional, na pressão nas disputas eleitorais e nas barganhas dentro do Legislativo e entre Legislativo e Executivo – com elas, direitos individuais se tornam moeda de troca para a manutenção de alianças e votações relacionadas a outras temáticas.
O resultado é que temos hoje, no Congresso Nacional, mais iniciativas legislativas que representam retrocessos na legislação atual do que iniciativas que implicariam avanços. Juntamente com compreensões convencionais de gênero e da família, a temática do aborto tem recebido destaque nas campanhas eleitorais, mas de uma perspectiva retrógada. Em suma, o debate é hoje capitaneado pelos grupos conservadores e os fundamentalistas religiosos vêm ganhando terreno sistematicamente. Nesse contexto, direitos individuais estão ameaçados – os direitos de mulheres e homossexuais são o objeto principal dessa ofensiva – e a democracia é colocada em xeque.
Historicamente, a posição das mulheres expõe a baixa efetividade dos direitos, mesmo dos mais fundamentais, como o direito à integridade física. A busca pelo controle do seu corpo pelos homens que lhes são próximos, como pais e maridos, e pelo Estado não ficou no passado, expressando-se no cotidiano da violência doméstica e sexual, assim como na legislação sobre aborto. Os limites à igual cidadania, de um lado, e a recusa a levar em conta a singularidade da posição das mulheres, de outro, comprometem as democracias amplamente. E mais: com os avanços do conservadorismo, a percepção de que essa singularidade se estabeleceria pela via da maternidade se coloca mais uma vez.
A maternidade é vivenciada pelas mulheres de maneiras distintas. Sobretudo a partir dos anos 1960, com o advento da pílula anticoncepcional, se torna menos compulsória. Seu caráter voluntário se fortalece, também, com a confrontação da dupla moral sexual: a possibilidade de afirmação da sexualidade feminina em termos que colocam a mulher numa condição de sujeito é parte desse processo. O ideal da maternidade permanece, porém, central à organização das relações de gênero e das trajetórias de muitas mulheres, na forma da responsabilização diferenciada, da socialização das meninas, de pressões e julgamentos que se impõem, diferenciadamente, a mulheres e homens.
Elizabeth Badinter destaca, em sua análise sobre a França, um retrocesso que parece presente também no Brasil: a ideologia naturalista ativa visões conservadoras e retrógadas, que nos levam de volta à ideia de que “é natural” que as mulheres cuidem das crianças, é “pelo bem das crianças” que o cuidado deve ser exercido diretamente pelas mulheres. É interessante, nessa análise, o entendimento de que é justamente no momento em que a maternidade mais se configurou como “escolha” (a partir dos anos 1960, com o desenvolvimento de métodos contraceptivos mais seguros) que se ampliou a ideia de que é um projeto de vida. É assim que o naturalismo se harmoniza com o conservadorismo religioso. Mulheres que se vêm como progressistas e que recusariam o segundo podem aderir ao primeiro. E as pressões para que os papéis tradicionais sejam assumidos se ampliam, com base em inúmeras justificativas, nas quais psicologismos e argumentos pseudocientíficos cumprem uma função importante.
Um fato biológico – apenas as mulheres têm a capacidade de engravidar – é tornado fundamento para uma generalização psicológica, a maternidade é a realização “natural” para a vida de qualquer mulher. O passo seguinte, também apresentado como autoevidente e baseado na natureza, não na organização da sociedade, é que o cuidado com as crianças é uma responsabilidade que cabe às mulheres, na qualidade de mães, muito mais do que aos homens. Difunde-se a ideia de que a saúde e a felicidade das crianças são uma função do amor materno, que seria demonstrado segundo fórmulas bem determinadas. De uma só vez, esse conjunto de ideias-força, reproduzido incessantemente por diversos aparelhos discursivos, garante que o cuidado com as crianças permaneça privatizado e que as mulheres se sintam constrangidas a se retrair da esfera pública, em nome do “instinto” a que todas estão submetidas. O direito ao aborto se coloca na contramão destes discursos. Ele é um componente incontornável para que as mulheres decidam suas próprias vidas e para que, assim, também a maternidade seja voluntária.
O sexismo aparece ainda como um componente importante da atuação dos grupos religiosos na política. Em sua oposição ao direito ao aborto, a laicidade do Estado, componente central à relação entre democracia e direitos individuais, é sistematicamente desafiada. Crenças são mobilizadas como fundamento de posições e decisões políticas, em oposição aos requisitos primordiais das democracias. Nem precisamos recorrer a concepções que destacam o problema da efetividade dos direitos e da igual cidadania, como as feministas, para se abordar o problema: o liberalismo, mesmo nas suas formas pouco atentas à igualdade no usufruto dos direitos, estabelece uma distinção fundamental entre os direitos individuais numa comunidade política e o direito de indivíduos e grupos determinados a orientar-se por crenças e valores morais que lhes são caros. A confusão entre uma coisa e outra opõe-se frontalmente a concepções de justiça e de democracia nas quais o indivíduo é um valor em si.
Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da UnB e pesquisadora do CNPq. Autora, entre outros, dos livros Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia (com Luis Felipe Miguel; São Paulo: Editora Unesp, 2011); Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Niterói: Eduff, 2013); Família: novos conceitos (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014); e Feminismo e política: uma introdução (com Luis Felipe Miguel; São Paulo: Boitempo, 2014).
Luis Felipe Miguel é professor titular do Instituto de Ciência Política da UnB e pesquisador do CNPq. Autor, entre outros, dos livros Mito e discurso político (Campinas: Editora Unicamp, 2000); Democracia e representação: territórios em disputa (São Paulo: Editora Unesp, 2014); Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; São Paulo: Boitempo, 2014); e O nascimento da política moderna: de Maquiavel a Hobbes (segunda edição, revista e ampliada: Brasília: Editora UnB, 2015).
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