Maioria dos países do continente restringe o aborto e incentiva práticas inseguras. Argentina busca nova tendência ao aprovar interrupção da gravidez na décima segunda semana.
(El País, 18/06/2018 – acesse no site de origem)
A dominicana Rosaura Almonte foi diagnosticada com leucemia quando estava grávida de sete semanas. Os médicos se negaram a tratá-la porque os medicamentos colocavam em perigo a vida do feto. Morreu aos 16 anos. Aos 19, Ida ficou grávida depois dos constantes estupros de um familiar. As autoridades nicaraguenses a impediram de abortar, e a jovem, com deficiência intelectual, viu-se forçada a dar à luz. Teodora cumpriu quase 11 anos de prisão em uma penitenciária de El Salvador, condenada após sofrer um aborto espontâneo no banheiro da escola onde trabalhava. Esses casos se repetem constantemente na América Latina, uma região na qual se concentram os países com algumas das legislações mais duras do mundo em questão de direitos reprodutivos.
Cerca de 90% das mulheres em idade reprodutiva na América Latina e Caribe vivem em países com leis que restringem o aborto. Em seis deles − El Salvador, Honduras, Haiti, Nicarágua, República Dominicana e Suriname −, a interrupção voluntária da gravidez é completamente proibida. Não é permitida nem mesmo para salvar a vida da mulher, como no caso de Rosaura − conhecida como Esperancita. Poucos países, como Uruguai, Cuba e Guiana, abrem o precedente para que a mulher interrompa a gestação até a décima ou décima segunda semana. Outros oito países permitem o aborto quase exclusivamente para salvar a vida da mulher, e só uns poucos abrem exceções em casos de estupro (Brasil, Panamá e Chile, por exemplo) e anomalias fetais graves. Contam-se às dezenas as presas por abortar, aos milhares as obrigadas a prosseguir com a gestação ou as forçadas a recorrer a um aborto clandestino, e às centenas as mortas pela recusa dos serviços de saúde a interromper sua gravidez, como denunciam as organizações de direitos humanos.
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No Brasil, onde deputados conservadores buscam restringir ainda mais os casos em que o aborto é permitido, o acesso ao aborto legal também é, muitas vezes, dificultado nos serviços públicos de saúde por uma questão pessoal ou religiosa dos profissionais. Tanto que que o Ministério Público Federal demandou o Sistema Único de Saúde para que o serviço passe por melhorias. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto, publicada em 2016 por pesquisadores da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual do Piauí, naquele ano quase uma em cada cinco mulheres já havia realizado aos 40 anos pelo menos um aborto na vida. E, todos os dias, quatro delas morrem nos hospitais brasileiros após buscarem socorro por complicações de uma interrupção mal feita, segundo um levantamento feito no Ministério da Saúde.
“São mortes de mulheres pobres e negras, que não têm 5.000 ou 10.000 reais para pagar pelo procedimento seguro em uma clínica clandestina em um bairro nobre das grandes cidades. Além de evitar mortes, legalizar o aborto também traria economia ao SUS. De acordo com levantamento feito no banco de dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), do Ministério da Saúde, nos últimos três anos, o governo atendeu quase cem vezes mais mulheres para a realização de curetagem pós-aborto do que para procedimentos dentro dos parâmetros da lei”, ressalta Sâmia Bomfim, vereadora em São Paulo e fundadora do Movimento Feminista Juntas.
“Está claro que na maioria de países da América Latina a vida das mulheres tem pouco ou nenhum valor”, lamenta Morena Herrera, histórica ativista e integrante do Agrupamento pela Descriminalização do Aborto em El Salvador. Para as organizações de direitos civis, a descriminalização do aborto em três casos no Chile (risco para a vida da mulher, estupro e anomalias fetais), no ano passado, trouxe uma grande esperança, assim como o caso da Argentina, que na quinta-feira deu um passo chave para a legalização dessa prática de saúde. Passos que podem ir transformando a realidade de um continente ultraconservador e com um problema descomunal de desigualdade de gênero.
Em El Salvador, as organizações de mulheres tentam há anos fazer avançar um projeto para permitir o aborto em casos de risco para a saúde da mulher, violação ou anomalias fetais graves. Ainda não conseguiram que a proposta seja debatida, apesar das críticas, reclamações e recomendações da ONU, que considera que legislações como a salvadorenha são um risco para a saúde e a vida das mulheres.
O pequeno país centro-americano é para muitos um dos exemplos mais extremos do que significa a proibição total dessa medida de saúde. Em El Salvador há pelo menos 20 mulheres presas por homicídio agravado por delitos relacionados com o aborto, embora na maioria dos casos tenham alegado uma perda involuntária. Muitas nem sabiam que estavam grávidas. Como Imelda, de 19 anos, encarcerada há quase dois anos em uma prisão no leste do país. A jovem, estuprada por seu padrasto, não sabia que estava grávida até entrar em trabalho de parto no vaso sanitário de sua casa. A criança sobreviveu, mas os médicos que atenderam Imelda a denunciaram. Imelda foi do hospital para a prisão, acusada de tentativa de homicídio. Uma equipe de advogadas recorreu da condenação.
A proibição de abortar, além disso, não fez com que essas intervenções diminuíssem. Só levou as mulheres a recorrer a métodos clandestinos e, muitas vezes, inseguros, como concluem dois estudos, um da Organização Mundial da Saúde (OMS) e outro do Instituto Guttmacher, publicados na revista especializada The Lancet em 2012 e 2017. E são quase sempre as mulheres mais pobres as que se veem afetadas pela proibição. “As ricas saem do país para abortar, as pobres recorrem ao aborto clandestino ou se veem obrigadas a seguir adiante com a gravidez”, denuncia a ativista Cari Gaviria. Seu país, a Nicarágua, proibiu totalmente o aborto em 2006, um retrocesso que as organizações de direitos humanos consideram dramático.
A rígida restrição do aborto acarreta um grave problema de saúde pública. Pelo menos 10% das mortes maternas na América Latina e no Caribe se devem a abortos inseguros. Além disso, a cada ano, 760.000 mulheres na região recebem tratamento por complicações derivadas de intervenções clandestinas, aponta um estudo publicado no International Journal of Obstetrics & Gynaecology.
A Internet e as redes sociais facilitaram o acesso de muitas ao aborto farmacológico − embora seja obtido no mercado negro −, assim como o assessoramento por parte de organizações especializadas. No entanto, as mulheres com menos recursos e as que vivem em zonas rurais se veem forçadas a usar métodos muito perigosos, como introduzir uma agulha na vagina, ou ácido; ou a ingerir medicamentos ou preparados caseiros fora de qualquer controle.
Herrera denuncia também que nos países onde o aborto é restrito ou totalmente proibido, o acesso aos anticoncepcionais modernos não é fácil, e chega a ser limitado. Tanto que cerca de 24 milhões de mulheres em idade reprodutiva na América Latina e no Caribe têm uma necessidade não satisfeita de contracepção moderna − aquela não baseada em métodos considerados naturais ou tradicionais −, segundo cálculos da ONU com dados de 2017.
E a descriminalização tampouco é uma garantia em alguns lugares. Na Costa Rica, a lei tecnicamente permite abortar por risco para a saúde da grávida, mas na prática o acesso à intervenção é quase impossível na saúde pública, alerta a advogada especialista em direitos humanos Larissa Arroyo Navarrete. “As mulheres se veem impedidas de recorrer à interrupção terapêutica da gestação devido aos preconceitos do pessoal de saúde, à deficiência na formação profissional técnica, médica e jurídica, e à cultura institucional dos serviços de saúde”, assinala Arroyo Navarrete.
É o caso de Ana e Aurora, que foram impedidas de abortar apesar de estarem grávidas de fetos com anomalias incompatíveis com a vida e de alegar risco para sua saúde física e mental. Ambas denunciaram a Costa Rica ante a Corte Interamericana de Direitos humanos e aguardam uma sentença ou um acordo. Essa instituição já condenou outros países por casos semelhantes. Como o Peru, que não só obrigou uma jovem de 17 anos a continuar com a gravidez de um feto anencefálico (sem cérebro), como também a forçou a amamentar o bebê durante os quatro dias em que ele permaneceu com vida depois do parto. A garota, conhecida como K. L., carrega até hoje as consequências do que viveu. Considera isso um caso de tortura.
María R. Sahuquillo