(O Globo, 10/06/2014) Uma mulher morre a cada dois dias e meio no Brasil, após se submeter a um aborto ilegal. Segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), órgão do Ministério da Saúde responsável por essa estatística, a curva de óbitos decorrentes de intervenções clandestinas para a interrupção da gravidez permanece inalterada desde 1996. A sociedade não pode fechar os olhos para estes dados. Eles são evidência de duas coisas: apesar de o aborto ser proibido, salvo para os casos explicitamente definidos, a lei não inibe sua prática. Como decorrência, procedimentos ilegais continuam se multiplicando ao preço de riscos para a vida das gestantes.
O Código Penal e o sectarismo religioso atuam como fatores de tolhimento ao aborto, mas a realidade das “clínicas” ilegais a eles se impõem. Por outro lado, há exceções previstas na legislação que descriminalizam a interrupção voluntária da gravidez nos casos de estupro ou violência sexual contra a mulher, risco para a vida da gestante e gestação de anencéfalo, feto sem cérebro — este último, por expressa manifestação do STF. Em complemento, a Lei 12.845, sancionada ano passado pela presidente Dilma Rousseff, determina que, nesses casos, ou seja, por motivos médicos e legais, os procedimentos de contracepção sejam feitos em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), acompanhados de serviços de obstetrícia.
Por todos estes aspectos, Dilma está certa ao afirmar que o SUS deve atender os casos de aborto permitidos por lei. A presidente se baseou no aspecto legal do problema: se a legislação aceita que a gestação seja interrompida em casos restritos, é óbvio que o Estado tem o dever de assegurar às mulheres o direito a atendimento médico na rede oficial. Trata-se de defender a vida, um problema de saúde pública que não pode ser tratado com hipocrisia, qualquer que seja o seu verniz.
Tanto quanto os aspectos legais das declarações de Dilma, também estatisticamente se justifica o atendimento pelo SUS dos casos legais de interrupção da gravidez. Segundo os ministérios da Saúde e da Justiça, assim como a Secretaria de Políticas para as Mulheres, ligada à Presidência, a distribuição de pílulas do dia seguinte pelas unidades do Sistema Único de Saúde, como procedimento contraceptivo previsto em lei, principalmente nos casos de violência sexual, fez a quantidade de abortos legais cair entre 2008 e 2012.
Por outro lado, a declaração de Dilma foi feita já no calor da campanha eleitoral e pode ser um desses temas que mais suscitam impostura que razão. O tema é polêmico, como se viu na eleição presidencial passada. Mesmo depois, cevou sectarismos, em grande parte devido a pressões de grupos religiosos — evangélicos e católicos. Em contraposição ao preceito constitucional que estabelece a laicidade do Estado, eles se valem da força de suas bancadas para atacar os avanços do país nesta questão. Caso das atuais manobras legislativas que visam à revogação da Lei 12.845 — um passo em favor do obscurantismo.
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