Aborto nas novelas porque o homem obriga: o que podemos aprender com isso?

16 de junho, 2019

Nas duas novelas da faixa nobre das maiores emissoras do Brasil, Globo e Record, dois dramas semelhantes: as personagens femininas vão engravidar, fazer aborto em clínicas clandestinas e morrer.

(Universa, 16/06/2019 – acesse no site de origem)

No novela da Globo, A Dona do Pedaço, foi a triste história de Edilene (Cynthia Senek). A moça é filha do motorista da família Guedes, e se encantou pelo patriarca da família, Otávio (José de Abreu) depois de suas investidas. Otávio tem apenas uma filha adotiva, a influenciadora digital Vivi Guedes (Paolla de Oliveira), porque a esposa tem problemas para engravidar.

Edilene, então, viu na situação uma oportunidade de dar um filho a Otávio, na esperança de que ele a assumisse. Durante a semana passada, a novela já havia exibido capítulos em que ela fura as camisinhas que ele usa — só que ele fica muito bravo quando descobre sua gravidez e exige que ela faça um aborto.

A emissora não dá detalhes de como ocorreu o procedimento, apenas mostra Edilene já no hospital, sangrando até a morte, no braços do pai — que é motorista de Otávio, patrão que a obrigou a interromper a gravidez.

No caso da Record, uma emissora abertamente religiosa, a novela em que a personagem vai realizar o aborto, Topíssima, aborda assuntos de empoderamento feminino. Brenda Sabryna interpreta Jandira, menina ambiciosa que mora em um morro, mas procura um marido rico para sair das dificuldades. Ela acaba engravidando de um golpista que a seduz e morre devido ao procedimento. A atriz não se posiciona sobre a legalização do aborto do Brasil e já declarou que “não é feminista nem machista”, apesar de afirmar ser a favor de que mulheres e homens tenham os mesmos direitos.

Jandira vai pensar em interromper a gravidez por influência do amante. O assunto deverá ser introduzido na trama nas próximas semanas.

“O aborto é um fato na vida reprodutiva das mulheres”, crava a professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), médica ginecologista e obstetra Helena Borges Martins da Silva Paro. Ela também é coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital de Clínicas da cidade mineira.

A declaração incisiva da especialista está baseada nos dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2016. O documento mostra que o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões. Para se ter uma ideia, segundo o estudo, naquele ano, praticamente 1 em cada 5 mulheres de até 40 anos já havia realizado pelo menos um aborto.

Em 2015, foram, aproximadamente, 416 mil mulheres. De acordo com o relatório há, no entanto, maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. “Como já mostrado pela PNA 2010, metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar, e a outra parte precisou ficar internada para finalizar o aborto”, ela diz.

De acordo com a especialista, no Brasil, é a 3ª causa mais frequente de morte materna. Já o aborto seguro e legalizado, feito com apoio e orientação de uma equipe de saúde, tem 14 vezes menos risco de morte do que um parto, segundo levantamentos apontados por ela. A descriminalização, então, seria uma das maneiras se de evitar essas mortes.

Quem morre mais é a mulher negra

“No Brasil, sofre quem faz o aborto inseguro: quem não tem acesso a uma clínica clandestina, ou dinheiro para a compra de medicação clandestina — que é barata, mas por ser ilegal, acaba sendo traficada a preços exorbitantes. São as mulheres de uma classe social mais baixa e da cor preta as que mais morrem”, ela declara.

Como alternativas, ela cita a educação sexual nas escolas. “Isso para que todas as pessoas — homens e mulheres — estejam conscientes de métodos contraceptivos seguros para exercício da atividade sexual com liberdade e autonomia”, opina a professora. O assunto, no entanto, divide a opinião pública e há quem defenda que não se deva falar disso na sala de aula. Outro jeito de evitar a gravidez é garantir acesso a serviços de planejamento familiar como DIU, que é eficiente e seguro.

O perigo do aborto caseiro, no desespero

Ela exemplifica com resultados da Romênia. Nos anos 60, o governo ditatorial proibiu métodos contraceptivos e aborto porque havia um preocupação muito grande com a baixa natalidade: a população estava diminuindo. O resultado foi um grande aumento da mortalidade materna.

“Quando o aborto voltou a ser legalizado e o acesso a contraceptivos, facilitado, na década de 90, a mortalidade caiu mais de 90%”, explica.

Sem amparo da lei, mulheres que não vêem outra alternativa senão o aborto acabam realizando procedimentos como introdução de objetos pontiagudos na vagina — cabides, agulhas ou até mesmo talo de mamona. Quando não morrem, acabam tendo infecções graves no útero que causam infertilidade.

Mas isso é assunto de novela?

Trazer um assunto polêmico como esse à tona na TV pode suscitar uma discussão construtiva e enriquecedora. Rodrigo Casemiro, psicólogo junguiano e dramaturgo acredita que, se a TV aborda um assunto polêmico, traz esclarecimento de informações e criação de empatia pelo outro. “Quando o personagem assume uma voz, a população se identifica.”

“Geralmente, a novela traz essas duas visões. É fácil julgar sem estar passando pela situação. Mas quem está na situação, quer acolhimento”, diz ele, que acredita que as cenas podem fazer com que o público compreenda a situação.

Além disso, Casemiro lembra que em lugares muito afastados do Brasil, muitas pessoas não têm acesso a informações — o que também pode acontecer nos grandes centros. Mas pelo menos uma televisão na sala, quase todo mundo tem.

“Quando a novela traz um assunto desse, está mexendo numa camada muito profunda de conceitos e preconceitos da sociedade. É interessante, por que causa essa fricção de opiniões, esse debate”, conclui o psicólogo.

Camila Brunelli

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