(BBC Brasil, 19/02/2016) Em 30 anos como médico obstetra, o pernambucano Olímpio Moraes conhece como poucos a força do debate sobre direitos reprodutivos e aborto no Brasil. Ele foi excomungado duas vezes por representantes da Igreja Católica no Estado – uma delas apenas por apoiar a iniciativa disponibilizar pílulas do dia seguinte em postos de saúde no Carnaval do Recife. Na outra, por realizar o aborto em uma menina de 9 anos que ficou grávida após ser estuprada pelo padrasto.
Por isso, discussões como a que envolve os atuais casos de microcefalia associada ao zika vírus não o surpreendem. “Já fazemos o diagnóstico precoce da zika, mas não sabemos qual o percentual de grávidas com zika que terá microcefalia, nem qual a gravidade. Mas é lógico que (o aborto) é um direito da mulher”, disse, em entrevista à BBC Brasil.
Moraes faz parte do grupo de médicos que defende que o Brasil adote uma legislação semelhante à de países como Portugal, Espanha e Uruguai, que dá a opção do aborto para todas as mulheres até as 12 semanas da gestação e, no caso das deformações, admite que sejam passíveis de aborto não só as incompatíveis com a vida, mas também as muito graves, que inviabilizam a independência da pessoa e uma vida humana considerada digna.
Os dois últimos argumentos têm sido especialmente usados por grupos que buscam conseguir que o Supremo Tribunal Federal decida incluir a má-formação como razão legítima para o aborto, como fez com a anencefalia em 2012.
Um artigo brasileiro publicado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) afirma que cerca de 70% dos casos atuais de microcefalia são graves. No entanto, o médico admite que o debate, desta vez, é mais difícil.
“No caso da microcefalia (o aborto) é mais complicado – não que eu seja contra –, porque ela é diagnosticada tardiamente. É diferente da anencefalia, que podemos diagnosticar com 12 semanas de gestação. Tecnicamente, quanto mais precoce o procedimento, mais simples ele é e menos traumático para a mulher”, afirma.
Objeção de consciência
Diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam) – o primeiro serviço médico a realizar abortos legais no Norte-Nordeste, que faz em média um procedimento a cada 15 dias –, em Recife, Moraes afirma que apesar da permissão em casos de estupro, de risco à vida da mãe e de anencefalia no bebê, mesmo o aborto legal ainda é difícil no Brasil.
Um dos principais empecilhos, diz ele, ainda é o comportamento de médicos e funcionários em relação às pacientes.
“Um grande problema para nós é a objeção de consciência, que é o direito do médico de se negar a realizar o aborto. Mas mesmo assim, o médico tem a obrigação de acolher a mulher, dar as informações a que ela tem direito e fazer o encaminhamento adequado.”
“Ele não pode usar a objeção de consciência para obstruir o acesso à saúde. Isso é antiético”, afirma.
Moraes admite, no entanto, que o argumento da objeção de consciência frequentemente significa que mulheres não terão amparo e orientação quando chegam à maternidade.
Em um caso recente, uma mulher grávida após um estupro chegou a ficar 24 horas no Cisam sem ser atendida, até que uma estudante de medicina se sensibilizou com sua situação.
“Você tem que tomar cuidado também porque os outros profissionais de saúde – enfermeiro, técnico de enfermagem – e mesmo o pessoal de apoio, como porteiro e maqueiro, agridem as mulheres com palavras”, conta Moraes.
“Mas como diretor, às vezes só fico sabendo das coisas depois que ocorrem. Aconteceu de a paciente vítima de estupro estar numa área reservada e um funcionário abrir a porta e dizer: ‘você vai matar seu filho’, apenas porque soube que aquele era um caso de abortamento.”
Mudança de posição
Mas apesar disso, Moraes se diz otimista sobre a mudança de mentalidade em relação aos direitos reprodutivos das mulheres.
“Houve um avanço. Quando eu me formei não se tocava no assunto. Quando a gente falava de aborto, era bem direto: aborto é crime, a mulher é criminosa. Era uma visão muito fria. E eu saí da faculdade com essa visão mesmo. Hoje sou diferente do que era há 30 anos”, diz.
“Me marcou muito um dos primeiros casos que atendi, de uma policial que foi estuprada por três homens e ficou grávida. Com o sofrimento e o contato com as mulheres, a gente vai aprendendo coisas que não foram ditas na faculdade.”
Ele diz ainda que o debate moral frequentemente ignora a experiência das mulheres que optam por interromper a gravidez.
“A mulher que faz o aborto não quer abortar. Isso causa consequências pra ela, físicas e psicológicas. Na verdade, ninguém é a favor do aborto. Mas quem é contra precisa entender que criminalizar não é a maneira mais eficiente de diminuir esse número. É o contrário.”
Na tentativa de mudar o cenário da formação de médicos, Moraes criou, na Universidade de Pernambuco (UPE), onde ensina, uma disciplina em que leva setores da sociedade para apresentarem seu ponto de vista aos alunos.
“Trazemos o movimento de mulheres, por exemplo, para discutir questões de direitos reprodutivos e planejamento familiar na perspectiva delas. Eles debatem o mesmo assunto que estão vendo na faculdade na perspectiva da biologia, mas pelo outro lado”, explica.
“O que me deixa feliz é que quem tem uma visão restritiva sobre o aborto e passa para o nosso lado, nunca mais volta. Eu tenho colegas aqui no Cisam que há 10 anos não faziam abortamento legal de maneira nenhuma e hoje fazem. Quando eles percebem que estão dando assistência, se sentem mais médicos.”
‘Sem certificado’
A excomunhão do obstetra anunciada em 2009 pelo arcebispo de Pernambuco na época, dom José Cardoso Sobrinho, não teve impacto em sua vida, diz Moraes.
“Toda a equipe médica daqui e a mãe da menina foram excomungadas. As pessoas me perguntam, mas não acontece nada. Até brinco dizendo que não recebi nenhum certificado para colocar no meu currículo, em defesa das mulheres”, diz.
A polêmica que lhe trouxe fama na imprensa nacional ocorreu quando o caso de uma garota de nove anos do interior pernambucano foi encaminhada a Recife, grávida de gêmeos.
“Ela tinha menstruado uma vez só e não entendia o que estava acontecendo, embora fosse dito para ela o que era uma gravidez. Ela achava que estava doente e ia para o hospital tirar o tumor. Estava sempre com uma boneca”, relembra.
A gravidez da menina era produto do abuso sexual do padrasto. O caso atraiu a atenção da imprensa e também das autoridades religiosas locais.
“Eu nunca tive dúvidas de que aquilo era o correto a fazer. No caso dela se somavam duas indicações para o aborto legal. Além do estupro, havia o risco de morte. Era uma criança de 1,32 m grávida de gêmeos. Isso é uma gravidez de alto risco.”
“Sou católico, como a maior parte dos brasileiros, mas não sou praticante. E acho que esse é um dos motivos que faz a gente se afastar quando começa a exercer a profissão. Às vezes acho que muitas religiões não condizem com um princípio básico que é ter compaixão e respeitar o sofrimento dos outros”, diz.
Após o procedimento, a família da garota mudou-se para outra cidade. O arcebispo deixou o cargo no ano seguinte, por causa da idade avançada.
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