(O Globo, 20/09/2014) Uma mulher morre a cada dois dias no Brasil vítima de aborto inseguro. A estimativa é da Organização Mundial de Saúde. Também é da OMS a informação de que o país faz, por ano, cerca de 1 milhão de procedimentos de interrupção da gravidez — quase todos ilegais, ou seja, feitos ao arrepio da legislação, que aceita como legais apenas os casos de contracepção ditados por risco à vida da gestante, estupro e gestação de feto com anencefalia.
Nos óbitos, a grande maioria é de mulheres das faixas sociais mais baixas. Dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) mostram que, até completar 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já abortou espontaneamente, apesar da criminalização da interrupção da gravidez. Proibido formalmente, mas consentido na prática, o aborto é uma questão que precisa ser discutida.
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Estes indicadores são incontestável evidência de que o aborto no Brasil é, acima de tudo, uma questão de saúde pública. E, subjacente, um problema social. A comparação dos números não disfarça a hipocrisia: se há predominância de gestantes pobres entre os registros de óbitos em procedimentos clandestinos, mas pelo menos 20% das brasileiras já fizeram aborto, decorre que quem tem dinheiro paga para interromper a gravidez de forma segura; quem não tem submete-se aos riscos de intervenções de risco.
Apesar dessas evidências, o tema tem estimulado radicalismos, irracionalismos e oportunismo político, em detrimento de uma discussão realista sobre que procedimentos o país precisa adotar para enfrentar a questão. De um lado — a despeito das tragédias familiares que a clandestinidade provoca e mesmo com a laicidade do Estado — grupos religiosos têm agido, nas diversas instâncias das decisões públicas, para evitar até mesmo o debate do assunto. De outro, o poder público, por conveniência política, se dobra às pressões.
É sintomático, por exemplo, que ações oficiais, mesmo as mais tímidas, não vinguem. Caso, por exemplo, de recente portaria do Ministério da Saúde que estabelecia procedimentos para o atendimento no SUS de mulheres com complicações decorrentes de aborto. Nesse caso, o governo federal, pressionado por grupos de evangélicos, voltou atrás e deixou o dito pelo não dito. E é igualmente emblemático que o aborto ainda seja tratado como tabu, na campanha eleitoral, pelos principais candidatos à Presidência.
O país tem de acordar para esse problema. O aborto clandestino leva à morte milhares de mulheres, em casos que, em geral, permanecem desconhecidos. O caso da jovem Jandira Magdalena dos Santos Cruz voltou a trazer a discussão à luz. Ela desapareceu na Zona Oeste do Rio ao procurar uma clínica para interromper uma gravidez indesejada. É preciso deixar a hipocrisia de lado, enfrentar com responsabilidade as pressões que tiram o tema do âmbito da saúde pública para o da religiosidade (e do oportunismo político) e discutir a questão pelo viés que de fato importa.
Acesse o PDF: Aborto precisa ser discutido sem hipocrisias, por Editorial (O Globo, 20/09/2014)