País pode se tornar o mais populoso da América Latina a permitir que mulheres interrompam a gravidez sem restrições
(O Estado de S. Paulo, 26/04/2018 – acesse no site de origem)
Lucia Bulat, estudante de medicina de 19 anos, estava dançando nos degraus do palácio do Congresso em Buenos Aires quando olhou para a multidão que participava de um comício em favor do aborto.
“Hoje é um dia maravilhoso”, disse Lucia. “Estamos conquistando a nossa autonomia e exigindo os nossos direitos. Não podemos permitir que as pessoas continuem nos dizendo o que podemos e não podemos fazer com os nossos corpos”.
Não faz muito tempo, as ativistas do movimento pelo direito ao aborto na Argentina tinham poucas razões para acreditar que poderiam tornar esta questão polarizadora uma prioridade legislativa. Mas, na terra do papa Francisco, recentemente os parlamentares começaram a avaliar a lei que permitiria que as mulheres fizessem um aborto nas primeiras 14 semanas de gravidez.
Se a medida for aprovada, a Argentina se tornará o país mais populoso da América Latina a permitir que as mulheres interrompam a gravidez – uma façanha em uma região na qual vigoram normas rigorosas sobre o aborto.
A chegada de um projeto de lei sobre o aborto à Câmara dos Deputados é considerada uma consequência do movimento pelos direitos das mulheres na nação, que começou em 2015 com uma campanha contra o feminicídio chamada “Ni Una Menos”.
“Lutar contra o feminicídio nos levou a lutar contra todas as formas de violência contra as mulheres – e não permitir que possamos decidir a respeito dos nossos corpos é uma forma de violência”, disse Andrea Schenk, 28, uma das manifestantes.
A perspectiva da legislação tornou-se mais plausível politicamente no início deste ano, quando o presidente Mauricio Macri, que se opõe à legalização do aborto, liberou legisladores aliados para “votarem de acordo com a sua consciência” sobre o tema.
Se o projeto for aprovado, será por causa de uma coalizão de aliados improváveis no Congresso. Entre as parlamentares que se uniram para apoiar o projeto estão Victoria Donda, de esquerda; Brenda Austin, da coalizão ‘Cambiemos’ de Macri; Romina del Plá, do Partido dos Trabalhadores; e Mónica Macha, uma aliada da ex-presidente de centro esquerda, Cristina Fernández de Kirchner. Serão realizadas audiências sobre o projeto de lei, que deverá ser revisto nos dois próximos meses.
Vários países da América Latina permitem o aborto em circunstâncias limitadas, como gravidez em decorrência de estupro ou quando a vida da mãe está ameaçada. A Argentina se tornaria a quarta nação da região a permitir o aborto sem tais restrições, ao lado de Cuba, Uruguai, Guiana e algumas partes do México.
Os que apresentaram o projeto de lei afirmam que sua motivação principal é salvar vidas. Embora as mulheres que foram estupradas ou sofrem de complicações potencialmente letais tenham a permissão de abortar, poucos médicos realizam o procedimento porque temem infringir a lei.
Complicações decorrentes de abortos clandestinos representam 18% das mortes maternas; segundo um estudo, em 2015 e 2016, pelo menos 98 mulheres morreram de abortos mal sucedidos.
O apoio à legalização do aborto aumentou à medida que a Igreja católica foi perdendo prestígio. No entanto, os líderes da igreja insistem em se opor ao projeto. Eles argumentam que melhorar a educação sexual nas escolas é uma estratégia mais adequada para tratar o problema da gravidez indesejada.
Uma pesquisa realizada este ano concluiu que cerca de 55% dos argentinos é a favor do aborto, embora as atitudes variem em termos geográficos. Nas províncias mais rurais do norte, 40% se mostram favoráveis, contra 67% em Buenos Aires.
Muitos preveem que a batalha real a respeito do projeto de lei se dará no Senado, onde a influência das províncias rurais é maior. Mas as ativistas estão convencidas de que será difícil que os senadores votem contra o projeto de lei se este obtiver uma ampla margem de apoio na Câmara dos Deputados.
“Nenhum senador é suicida”, disse Victoria Donda. “Nós vamos ganhar porque temos os argumentos mais sólidos a nosso favor”.
Daniel Politi