(Folha de S.Paulo, 08/03/2016) Quando Samuel Ferreira nasceu, os enfermeiros do Hospital e Maternidade de Abreu e Lima, na região metropolitana do Recife, disseram aos pais que ele tinha microcefalia.
Com 30 cm de perímetro cefálico, o bebê deveria ser encaminhado a um serviço de saúde especializado para confirmar o diagnóstico e receber acompanhamento, segundo protocolo da OMS (Organização Mundial da Saúde). Não foi o que ocorreu.
Desde que receberam a notícia, há pouco mais de um mês, Tadiane Ferreira, 17, e Manoel Carlos dos Santos, 24, não tiveram nenhuma assistência. “Nem os exames do pezinho e da orelhinha ele fez lá”, conta Tadiane. Desempregada, ela cuida do filho na casa alugada em Paulista, no Grande Recife, enquanto o marido procura bicos. “O que aparecer ele faz.” O único ganho fixo são os R$ 75 do Bolsa Família.
Samuel não é o único bebê com suspeita de microcefalia fora do radar da Secretaria Estadual de Saúde. Assim como ele, centenas de outros não fizeram exames para confirmar a doença ou ainda aguardam o resultado. Há também aqueles que não conseguem ter o acompanhamento adequado.
Dados do último boletim da pasta apontam 1.672 crianças com suspeita da má-formação em Pernambuco, das quais apenas 440 receberam o diagnóstico definitivo. A Secretaria de Estado da Saúde diz que busca ativamente as famílias para que todas as crianças sejam avaliadas. “Mas isso [o baixo número de diagnósticos] não é uma realidade só de Pernambuco”, diz, em nota.
Peregrinação
Com o apoio da amiga Micaela Celestino, 25, que também tem um bebê com microcefalia, Tadiane precisou vencer o medo de andar pela região metropolitana para buscar ajuda para o filho. Sai de casa cedo com o menino, por volta das 4h, e já esteve em ao menos quatro hospitais.
O exame do pezinho foi no Hospital Central de Paulista. O da orelhinha, no Hospital do Tricentenário, em Olinda, a quase 20 km de sua casa. No Centro de Reabilitação da Fundação Altino Ventura, no Recife, ela conseguiu agendar o exame oftalmológico. Tomografia e hemograma serão no Hospital Universitário Oswaldo Cruz, também na capital.
Interior
No interior, o governo estadual começou a estruturar unidades para diagnóstico e reabilitação de casos de microcefalia, mas hoje sobram vagas. Muitos bebês não são encaminhados ou não conseguem chegar aos postos, porque dependem do transporte das prefeituras.
Em Caruaru, por exemplo, apenas 183 dos 353 casos suspeitos haviam chegado ao hospital até 23 de fevereiro. E, entre os 27 bebês que tiveram a confirmação de microcefalia na unidade, apenas dez estão em reabilitação, com atendimento semanal.
Além disso, há uma dose de improviso. “Estamos adaptando o espaço para atender os bebês. Pedimos autorização do governo para comprar os brinquedos para a fisioterapia e estamos aguardando”, diz Francisco Galvão, diretor da Upae (Unidade Pernambucana de Atenção Especializada) Ministro Fernando Lyra.
Na cidade do agreste, um dos sete centros de referência criados no Estado e que atende 53 municípios da região, o diagnóstico é feito no Hospital Mestre Vitalino.
A capacidade é de 25 consultas semanais de microcefalia, mas a média de atendimento é de 15 a 17 pessoas por semana, segundo o diretor-geral Marcelo Cavalcanti. “Acho que muita gente não está conseguindo chegar porque há municípios que não estão oferecendo o transporte.”
Ali, os bebês passam por um neuropediatra e fazem tomografia e coleta do LCR (líquido cefalorraquidiano), que busca o vírus da zika na medula –o resultado demora em média 20 dias. Após a confirmação, todos os bebês deveriam ser encaminhados para a Upae, onde são atendidos por otorrinolaringologistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, oftalmologistas, psicólogos e nutricionistas.
Mãe Enfermeira
Nessa região, a família de José Wesley Souza, de Bonito (a 139 km do Recife), é uma que espera há cinco meses o início da reabilitação. Uma tomografia confirmou a má-formação no menino, mas ainda assim ele não foi encaminhado para as terapias necessárias.
“Eu mesma que faço. Quando chora muito, coloco ele na água, aí ele se acalma. Na semana que vem ainda vamos fazer o exame de sangue, aí eles marcam a reabilitação. Até lá, eu sou a enfermeira”, conta a mãe, a dona de casa Solange de Souza, 30.
Questionada sobre o número de atendimentos nos outros centros, a secretaria de Saúde de Pernambuco informou, em nota, que “ainda está levantando o fluxo de pacientes, e por isso, não tem o número exato”.
Outro Lado
A Secretaria de Saúde de Pernambuco reconhece que muitas famílias de crianças com microcefalia ainda estão sem atendimento adequado. Para resolver o problema, segundo George Dimech, diretor de Controle de Doenças e Agravos do Estado, o governo criou equipes que estão indo à casa de famílias com suspeita da má-formação.
“Servidores das regionais de saúde do Estado vão de porta em porta para trazer essas pessoas para o serviço”, afirmou Dimech, sem detalhar o número de pessoas envolvidas, quando o serviço começou nem quantas famílias foram encontradas.
Apesar de haver um protocolo de atendimento para os microcéfalos e suas mães, a secretaria acredita que haja subnotificação na hora do parto. Nesses casos, a falha pode ser das unidades, a maioria municipal.
Para Dimech, parte do problema pode se dever à carência das famílias, que não têm condições financeiras de se deslocarem até as unidades de saúde. O governo do Estado estima que 77% das mães de bebês com a má-formação estejam abaixo da linha de extrema pobreza. “O governo, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, está criando um benefício mensal que deverá ajudar o transporte dessas pessoas. Mas ainda não há previsão.”
A Prefeitura de Abreu e Lima informou que todos os bebês nascidos no hospital e maternidade passam pelo teste do pezinho e da orelhinha. “Pelo fato de a criança ter nascido em uma sexta-feira, é possível que a mãe tenha recebido alta no domingo e não tenha retornado à unidade hospitalar para realização do teste do pezinho e da orelhinha, como deveria ser feito”, afirmou, em nota.
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