(Jornal do Comércio, 18/04/2016) A neuropediatra Vanessa van der Linden foi uma das precursoras na investigação da relação entre o zika vírus e o aumento de casos de microcefalia registrados desde o ano passado no Brasil. Ao atender a um caso de gêmeos, um com microcefalia e outro não, a médica ficou intrigada por não conseguir identificar a causa da má-formação. A partir daí, com ajuda de outros especialistas e o incentivo da Secretaria da Saúde de Pernambuco, a apuração se aprofundou. Vanessa é gerente médica da Associação de Assistência à Criança com Deficiência, em Recife, que, atualmente, atende a 130 pacientes com microcefalia. Em entrevista ao Jornal do Comércio, ela alerta que ainda não se pode precisar a extensão dos danos nos bebês e que o Brasil não está preparado para lidar com tantos casos ao mesmo tempo.
Jornal do Comércio – Como a senhora fez a ligação entre a microcefalia e o zika vírus?
Vanessa van der Linden – Tudo começou quando atendi a um caso de gêmeos, um com microcefalia e outro com a cabeça normal. Os pais queriam entender o motivo, então comecei a investigar. Isso foi em agosto de 2015. Fiz todos os exames, mas não consegui identificar o que era. Tinha certeza que era uma microcefalia derivada de infecção congênita, mas não aparecia nada. Aí, começaram a surgir vários casos, e procurei outros especialistas. Concluímos que teríamos de fazer mais exames nesses bebês, e procuramos a Secretaria da Saúde. Alguns epidemiologistas daqui já estavam investigando o zika vírus em adultos, bem como a relação entre o zika e casos de Síndrome de Guillain-Barré, aí pensamos que poderia ter uma relação. Clinicamente, nada nas imagens sugeria que pudesse ser causado por larvicidas ou vacinas. Desde o começo, eu tinha certeza que era infecção congênita, porque as ressonâncias e as tomografias diziam isso. Outras doenças causam microcefalia, como sífilis, até mesmo o HIV, mas não é comum que cause essas calcificações que vemos nesses pacientes. O que dá um quadro parecido é o citomegalovírus, mas a imagem é um pouco diferente. Agora que vemos exames de vários casos, podemos identificar esse padrão, com características específicas. As crianças apresentam um excesso de pele, como se tivesse havido realmente uma redução intrauterina do cérebro, e um osso mais pontudinho na região occipital.
JC – Recentemente, a Organização Mundial de Saúde confirmou a relação entre os casos de microcefalia e o zika vírus. O que isso significa para o Brasil?
Vanessa – Podemos nos concentrar em definir como vamos tratar. Não vamos dividir os esforços, não precisamos mais pensar qual a causa, e sim em procurar uma melhora, com prevenção, para tentarmos diminuir os casos. Também podemos focar em outros métodos, como uma vacina. Não trabalho com isso, mas acredito que algo mais precisa ser feito. Já temos a dengue, que também é grave, há mais de 30 anos, e ainda não conseguimos erradicá-la. Se dependermos só da população para eliminar o vetor, vai ser complicado.
JC – No boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, divulgado na semana passada, consta que o Brasil tem 1.113 casos confirmados e mais de 3 mil em investigação. O que dificulta a confirmação?
Vanessa – Como não temos um exame que identifica a causa como sendo pelo zika, a microcefalia por infecção congênita precisa ser comprovada pela tomografia. Claro que, mais tarde, poderemos descobrir que alguns desses casos foram provocados por outras infecções, mas, a partir do momento em que a tomografia aponta a infecção, o caso é confirmado. Em Pernambuco, fizemos uma parceria com neuropediatras e a Secretaria de Saúde para tentarmos acelerar os diagnósticos. Às vezes, o paciente é notificado na maternidade, mas não fica para fazer todos os exames – até porque nem todos os hospitais os disponibilizam. Então ganha alta, procura um centro para fazer os exames e, a partir daí, o caso é confirmado ou descartado. Fizemos dois mutirões em Recife. Somente no primeiro, atendemos a 116 casos e confirmamos uns 20. Se vemos que não tem microcefalia ao medirmos a cabeça, já liberamos. Algumas crianças recebem a confirmação, mas os médicos, por algum motivo, não comunicam a Secretaria da Saúde para dar baixa no sistema. Por mais que as secretarias façam um bom trabalho, é difícil que tudo funcione de maneira organizada. Com esses mutirões, tentamos mensurar a dimensão dessa epidemia, pelo menos em Pernambuco.
JC – O secretário da Saúde do Rio Grande do Sul, João Gabbardo dos Reis, afirmou que teremos uma “geração com problemas neurológicos”. O que os pais dessas crianças podem esperar?
Vanessa – Isso vai depender do paciente. Tem casos gravíssimos, com más-formações importantes e lesões cerebrais. É muito complicado dizer, na fase inicial de uma doença que não conhecemos direito, quais serão as consequências. Uma criança com má-formação cerebral, com lesão e calcificação, costuma apresentar comprometimento global, tanto da parte cognitiva como da motora. Algumas têm comprometimento mais leve. Temos muitos casos ao mesmo tempo, e é isso que preocupa. O Brasil já não tem centros de reabilitação suficientes. Agora, ficou ainda mais complicado. Estamos tentando, mas, com essa crise na saúde pública, não sei como isso vai se organizar a longo prazo, até porque as complicações aparecem quando a criança começa a se desenvolver. Na fase inicial, o bebê não faz muita coisa. No centro onde eu trabalho, temos 130 pacientes com microcefalia. Tento trabalhar com os pais para que vivam um dia de cada vez, para que lidem com as dificuldades conforme elas cheguem. Uma tomografia ou uma ressonância não vai definir como a criança vai estar com um ou dois anos. Vamos continuar estudando para tentar descobrir como a criança vai evoluir.
Suzy Scartin
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