No ano passado, unidades de saúde do Estado realizaram 16.733 curetagens e esvaziamentos de útero
(O Tempo, 03/07/2017 – acesse no site de origem)
O aborto no Brasil é permitido em casos de estupro, gravidez com risco de morte materna ou feto anencéfalo (com malformação do cérebro). Em qualquer outra circunstância, ele é ilegal. Segundo o Ministério da Saúde, oficialmente, em Minas Gerais, foram realizados 15 abortos legais em 2016, mas os hospitais da capital mineira computaram cerca de 40. Por outro lado, as unidades de saúde do Estado fizeram 16.733 procedimentos pós-aborto (curetagem e esvaziamento do útero) no ano passado. Isso significa que, em média, a cada hora, duas mulheres procuram o Sistema Único de Saúde (SUS) por complicações surgidas após terem abortado de forma provocada ou espontânea.
Sem estatísticas confiáveis, os abortos ilegais estão ocorrendo todos os dias em Minas e no país. Muitos deles, em lugares clandestinos e arriscados. “Como é crime, as pessoas não vão expor isso. Elas chegam ao hospital com quadro de hemorragia grave e nunca falam que tentaram o aborto”, afirma a obstetra Alamanda Kfoury, do ambulatório de medicina fetal do Hospital das Clínicas.
Aquelas que têm o direito de interromper a gestação, nos quadros assegurados por lei há mais de 30 anos, enfrentam dificuldades no atendimento, que deveria ocorrer imediatamente nas unidades com obstetrícia e emergência, conforme garante a Portaria 415/2014 do Ministério da Saúde. E um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) avança no Senado para impossibilitar todo tipo de aborto.
“As mulheres que moram no interior do Estado têm problemas de acesso porque são muito discriminadas, julgadas, e os médicos se recusam a fazer por preconceito. Algumas vêm para a capital, outras desistem”, relatou Inessa Beraldo Bonomi, gerente assistencial do Hospital Júlia Kubitschek.
O processo. Referência em saúde da mulher, o Júlia Kubitschek realizou 250 procedimentos de curetagem uterina pós-aborto no ano passado e, faz, em média, seis abortos legais por ano desde 2005. Em situações de violência sexual, a vítima não precisa provar nada nem apresentar boletim de ocorrência. Ela é acompanhada por uma equipe multiprofissional na unidade. “Não cabe ao médico perguntar o que ela fez, mas sim acolher. A gente sabe que essas mulheres peregrinam muito e são discriminadas. A assistência humanizada ao abortamento não acontece em todos os hospitais”, destacou Inessa.
Nos casos ilegais, a criminalização tem matado e deixado sequelas. Lorena*, 26, tomou comprimidos comprados na internet, na sexta semana de gravidez, para provocar o aborto. Passou mal, teve sangramento, infecção e febre. “Quase morri”, contou. O vendedor a orientou a não procurar o hospital imediatamente se passasse mal, pois o médico detectaria o remédio, e ela poderia ser presa. “Esperei 15 dias. Não sabia o que estava fazendo, não tinha o apoio de ninguém. Meus pais descobriram quando internei e até hoje não falam comigo direito”, disse Lorena, que guarda o trauma de algo feito há quatro anos sem segurança nem suporte. A médica que a atendeu disse a ela que “havia um coraçãozinho batendo” dentro dela, o que a deixou ainda pior. “É uma dor sem fim. Você não pode falar para ninguém. Os psicólogos não querem tocar no assunto”, relatou.
A reportagem entrevistou outras três mulheres que optaram pelo aborto aos 20 e poucos anos, sem estrutura para terem um filho. Não se arrependem, mas sabem do risco que sofreram. Elas desembolsaram entre R$ 300 e R$ 3.000 no procedimento.
*Nome fictício
Parecer. Quando há risco de a mulher morrer, ela deve apresentar laudo de dois médicos para fazer o aborto; no caso de feto anencéfalo, é preciso um ultrassom. O ato não deve ocorrer após o quinto mês de gestação.
Projeto quer proibição do ato
A inviolabilidade do direito à vida “desde a concepção”. A Proposta de Emenda (PEC) 29, de 2015, que quer acrescentar o trecho acima à Constituição, tem avançado no Senado, apesar de 70% dos internautas que votaram na consulta pública do site da Casa serem contra. Se for aprovado pelos senadores e na Câmara dos Deputados, posteriormente, o texto vai inviabilizar a legislação que permite o aborto nos três casos específicos.
A obstetra Alamanda Kfoury ressalta a importância de se oferecer para a mulher que descobre que o feto é anencéfalo a possibilidade de escolher interromper aquela gestação que vai gerar uma criança que não sobreviverá. Alamanda acredita que, na verdade, as situações permitidas por lei precisariam ser ampliadas, já que existem, por exemplo, outras malformações do corpo incompatíveis com a vida. “O aborto legal é um avanço na saúde da mulher, que tem condição de interromper a gravidez sem se expor ao risco de morte por hemorragia ou infecção em clínicas e lugares clandestinos”, afirmou ela, que é especialista em medicina fetal.
Hoje, mesmo nos casos legais, por vezes, as mulheres precisam ir à Justiça para fazer valer seu direito. A defensora pública Cleide Nepomuceno, da Defensoria de Direitos Humanos, cita um caso em que a mulher havia sido vítima de violência sexual, mas o juiz “negou o aborto por entender que não estava comprovado (o crime) e que a mulher demorou a dar queixa na polícia”. Contudo, essa comprovação não é necessária. “São casos em que o médico ou a paciente não se sentiu seguro de fazer o aborto sem ordem judicial”, explicou.