Incidente que completa 5 anos neste mês impulsionou alinhamento improvável de ativistas com Alexandre de Moraes
No dia 7 de agosto de 2020, uma menina de 10 anos deu entrada no Hospital Roberto Silvares, em São Mateus, no norte do Espírito Santo. Um teste de farmácia feito em casa havia indicado que os anos de abuso sexual cometidos por um tio, sem conhecimento do resto da família, tinham resultado em uma gravidez.
Durante dez dias, a criança e sua família foram colocadas nos holofotes nacionais, em uma disputa que envolveu o alto escalão do governo de Jair Bolsonaro, o Judiciário e ativistas pró e contra o aborto.
Cinco anos depois, o caso se tornou um marco. Inspirou ações de grupos feministas, desencadeou uma ofensiva conservadora contra o aborto legal acima de 22 semanas e aproximou, de forma inesperada, o ministro do STF Alexandre de Moraes das causas reprodutivas.
A Folha começa a publicar neste sábado (9) uma série de reportagens sobre o caso e suas repercussões.
A menina conseguiu interromper a gestação no Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), no Recife, em 16 de agosto, após ter atendimento negado no Espírito Santo por causa da idade gestacional de 22 semanas. Nas redes sociais, circularam imagens de manifestantes bolsonaristas aglomerados em frente ao hospital pernambucano aos gritos de “assassina”, rezando e quebrando uma das portas de entrada.
“Esse caso mudou algumas questões. Existia uma negativa geral dos serviços de aborto legal em casos de gravidez a partir de 22 semanas, por um entendimento errado das leis, das diretrizes que a gente tem, até mesmo do Código Penal” afirma a enfermeira Paula Viana, fundadora da ONG Grupo Curumim, que atua na defesa de direitos das mulheres. Em 2020, ela fez a ponte entre a Secretaria de Saúde do Espírito Santo e o Cisam.
O Código Penal brasileiro não possui marco temporal para o aborto legal, mas portarias e notas técnicas do Ministério da Saúde, e outros documentos infralegais, como guias de conduta de governos estaduais mencionavam um limite que varia entre 20 e 22 semanas de gestação, ou peso fetal de 500 gramas.
O argumento a favor da interrupção é que essas normas não têm força legal para se sobrepor ao que está previsto no Código Penal. Mas a interpretação não é unânime, e a ausência de regulamentação clara alimentou um embate prolongado entre os dois campos.
De um lado, ativistas passaram a divulgar publicamente casos concretos para garantir que meninas tivessem acesso ao aborto com o apoio da pressão social. Do outro, grupos conservadores intensificaram suas tentativas de inviabilizar esses procedimentos, seja por meio de mudanças legislativas ou de pressões sobre médicos e hospitais.
A mobilização em torno da menina capixaba foi considerada um sucesso por grupos que atuam pelos direitos reprodutivos. Embora a divulgação ali não tenha sido planejada, há um entendimento de que outras meninas podem se beneficiar de pressão popular, quando caminhos institucionais para o acesso falham.
Em 2022, os sites Intercept Brasil e Catarinas revelaram que uma juíza havia pedido a uma criança catarinense de 11 anos que “aguentasse só mais um pouquinho” para dar à luz, sem atender ao pedido da família pela interrupção. Após nova mobilização social, ela teve acesso ao aborto com quase 29 semanas de gestação. Outros casos se seguiram, em estados como Piauí, Goiás e Pará.
A discussão sobre o limite gestacional para o aborto legal atingiu seu ápice entre o fim de 2023 e meados de 2024. Em dezembro de 2023, a Prefeitura de São Paulo fechou o serviço do Hospital Vila Nova Cachoeirinha —único na cidade a realizar interrupções após 22 semanas.
Pessoas ligadas ao caso afirmam que a decisão teve relação direta com os procedimentos feitos em gestações mais avançadas, embora a gestão Ricardo Nunes (MDB) afirme que se tratou de decisão estratégica para zerar fila de cirurgia de endometriose.
Em abril de 2024, o CFM (Conselho Federal de Medicina) publicou uma resolução que proibiu a assistolia fetal —técnica recomendada pela Organização Mundial da Saúde para abortos mais avançados. Na prática, a norma inviabilizou esses procedimentos enquanto esteve em vigor.
Esse tempo foi curto porque, em maio, um improvável aliado veio ao auxílio da esquerda e de movimentos feministas: o ministro do STF Alexandre de Moraes, que por anos antes de assumir no tribunal foi associado pelo campo à direita. Em questão de meses, o magistrado suspendeu a resolução do CFM, determinou que São Paulo estabelecesse serviços para interrupções mais avançadas e impediu conselhos regionais de medicina de acessarem dados de pacientes que as realizaram.
A reação conservadora veio do Congresso, com a aprovação da urgência do PL 1904/24, que equipara o aborto acima de 22 semanas ao crime de homicídio. “Nós vimos que o nosso sonho, do Estatuto do Nascituro, estava ficando mais longe e vimos que seria um caminho do meio lidar com a questão das 22 semanas”, afirma o autor do projeto, deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).
A mudança de estratégia veio da constatação de que propostas mais amplas, como o próprio Estatuto, que visa criminalizar todos os casos de aborto, estavam há anos travadas no Legislativo. O novo projeto representava uma alternativa viável para o avanço da pauta conservadora. No entanto, a iniciativa acabou retirada da pauta —marcando a primeira grande vitória legislativa do movimento feminista em anos.