Católicas e evangélicas se mobilizam em grupos contra PEC 181
(O Globo, 25/11/2017 – acesse no site de origem)
Uma interpretação de uma passagem do livro Êxodo, na Bíblia, virou uma ferramenta na luta de Camila Mantovani, 22 anos, frequentadora da Igreja Batista do Caminho, em Niterói, para defender a descriminalização do aborto. O Livro Sagrado, geralmente usado para defender o contrário, virou fonte de argumentos para religiosas como ela, que lutam pela liberação do aborto sem se afastar de suas denominações. Camila é uma das mulheres que criou há dois meses a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, com cerca de 30 integrantes no Rio. Ela segue o caminho das Católicas pelo Direito de Decidir. São mulheres que tentam convencer membros de suas denominações de que defender a vida pode significar garantir o acesso das mulheres a procedimentos legais e seguros para a interrupção da gravidez. A presença desses grupos chamou a atenção nos últimos protestos contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 181, que pode criminalizar a interrupção da gravidez nos casos já previstos em lei: estupro, risco à vida da mãe e bebês com anencefalia.
— Algo que tem funcionado para conseguir apoio nessa pauta é trabalhar com dados. Mostrar porque a criminalização não funcionou e explicar que defender a legalização é diferente de defender a prática. Resgatamos alguns trechos da Bíblia, como uma do Êxodo (capitulo 21, versículos 22 e 23), no qual fica claro que a vida da mulher está muito acima da do feto, quando diz que a vida dela deve ser paga com outra. Enquanto no caso da perda do feto, o agressor deveria ser “multado”. Temos na Bíblia um exemplo do quanto a vida da mulher vale mais do que a de um embrião — argumenta Camila, estudante de licenciatura em educação, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que sofreu violência sexual aos 12 anos.
A PEC 181 foi, inicialmente, criada para estender a licença-maternidade de mães com bebês prematuros, mas uma alteração no texto, feita por deputados da bancada religiosa, propõe incluir na Constituição a proteção da vida “desde a concepção”. Na prática, isso resultaria numa proibição total ao aborto.
— Essa mudança é um escárnio com a vida, e com o próprio cristianismo. O argumento é muito simples: enquanto cristãos, a defesa da vida tem que estar em primeiro lugar. Se prezamos pela vida, temos de garantir que as mulheres não sejam mortas — defende Camila, que milita no PSOL, partido autor de uma ação no Supremo Tribunal Federal que pede a liberação do aborto até a 12ª semana de gestação. — A criminalização não impede que os abortos aconteçam e assassina as mulheres que o praticam. Ser a favor da legislação atual é uma contradição com a sacralização da vida. Precisamos de uma redução de danos, de um sistema que mate menos pessoas. Por isso argumentamos pela legalização.
Há dois meses, Camila se mobilizou com outras fiéis para criar a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, mas a iniciativa foi combatida por radicais da trincheira oposta desde o primeiro encontro. Antes da chegada das participantes, o espaço escolhido para o encontro teve as paredes pichadas com versículos bíblicos e frases que associavam as evangélicas a favor da legalização a figuras satânicas presentes no Livro Sagrado.
DISTÂNCIA ENTRE DENOMINAÇÕES E FIÉIS
Boa parte das religiões considera a existência da vida desde o momento da fecundação. Interromper o processo seria um pecado, um atentado à vida. Mas, apesar desse dogma, Camila acredita que a opinião de grande parte dos fiéis é bem diferente. Uma enquete organizada na internet pelo grupo dela sobre a possibilidade de articular um movimento nacional de religiosas em prol da legalização teve o interesse de 17 mil mulheres em vários estados do país.
A distância entre o que defendem a Igreja Católica, denominações evangélicas e deputados da bancada religiosa no Congresso e o que realmente pensam seguidores dessas religiões apareceu em uma pesquisa realizada pelo Ibope, neste ano, a pedido do grupo Católicas pelo Direito de Decidir — organização criada em 1993 e que tem como pauta central a legalização do aborto. A pesquisa entrevistou pessoas acima de 16 anos em 143 municípios do Brasil e chegou à conclusão de que 65% dos católicos e 58% dos evangélicos consideram que a decisão a respeito da interrupção da gestação deve ser da mulher.
— A Igreja considera o aborto um pecado mortal, que prevê a expulsão da fiel. Mas nós trabalhamos com a ideia de que direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos, não devem ser contestados — afirma Rosângela Talib, uma das coordenadoras do grupo de católicas pró-aborto. — Na doutrina católica há a teoria do probabilismo que diz que, em questões morais difíceis e quando não há uma posição única dentro da Igreja, a despeito de a hierarquia defender que o aborto é um crime, o fiel deve escolher que decisão tomar. Baseadas nessa doutrina, defendemos o direitos das mulheres de decidirem pela interrupção da gravidez.
Procurada pelo GLOBO, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) discorda. Em nota, defendeu que “desde quando o óvulo é fecundado, encontra-se inaugurada uma nova vida, que não é nem a do pai, nem a da mãe, mas a de um novo ser humano”. Devido a isso, condena “todas e quaisquer iniciativas que pretendam legalizar o aborto no Brasil.”
Em novembro do ano passado, o Papa Francisco chegou a ser alvo de conservadores por ter autorizado padres a perdoarem fiéis que tenham cometido o aborto. Antes, apenas os bispos tinham esse poder. Mesmo assim, quando anunciou a medida, o Pontífice ressaltou que o aborto é “um pecado grave, uma vez que põe fim à vida de um inocente”.
Questionada se, em uma realidade como essa, faz sentido o canto feminista ouvido em manifestações pró-aborto “se o Papa fosse mulher, o aborto seria legal”, Rosângela admite:
— Temos uma Igreja patriarcal. Não há representação feminina nos altos escalões, apesar de mulheres serem a maioria nas igrejas. Devido a isso, há dificuldade de pensar questões relacionadas à vida das mulheres. Na Anunciação de Jesus, Maria diz “eu aceito”. Até ela foi consultada.
Paula Ferreira