(O Globo, 06/10/2014) A morte de duas mulheres no Rio de Janeiro, no espaço de um mês, vítimas de aborto inseguro — ou seja, praticados à margem do sistema oficial de saúde — reconduziu à luz o debate sobre a questão. Não que os números dos procedimentos de interrupção voluntária (e, em razão de ser ilegal, necessariamente clandestina) da gravidez estejam dentro de marcos toleráveis no Brasil. Ao contrário, se mantêm em inquietante curva ascendente, segundo levantamentos seguidos da Organização Mundial de Saúde e de entidades nacionais, oficiais ou não, cujas atividades se relacionam a esse problema.
Leia mais:
A hipocrisia da criminalização do aborto, por Reis Friede (Diário de Cuiabá, 07/10/2014)
Aborto invisível, por Jacqueline Pitanguy (O Globo, 05/10/2014)
Mas, por incômodo e polêmico, o tema inspira mais leniência que ações efetivas para enfrentar suas mórbidas consequências. A fatalidade que vitimou duas mulheres em tão pouco espaço de tempo, e o fato de o aborto, ainda que por um viés equivocado, ter desembarcado na campanha eleitoral, estimulando mais paixão que razão na abordagem do problema, não devem levar a sociedade a achar que consequências funestas relacionadas ao aborto inseguro se tratam de episódios tópicos, pontuais. Longe disso.
Aos números: levando em conta dados de internações registradas pelo SUS, pode-se estimar que somente no Estado do Rio foram feitos ano passado 67 mil procedimentos de interrupção espontânea e induzida de gravidez. Na capital, perto de 8 mil mulheres foram internadas com complicações pós-curetagem ou vítimas de outros métodos abortivos. Esse perfil da clandestinidade que leva a tragédias se estende a todo o país. Segundo a OMS, clínicas “de fundo de quintal” como as que levaram ao óbito as duas pacientes no Rio são responsáveis por um indicador tenebroso — nelas, uma mulher morre a cada dois dias no Brasil. O total de procedimentos ilegais chega a 1 milhão, também de acordo com a OMS. A isso, junta-se a estimativa, da Pesquisa Nacional do Aborto, de que uma em cada cinco brasileira já terá abortado até completar 40 anos.
São indicadores que não podem ser negligenciados numa discussão séria, o mais possível desapaixonada, sobre o problema. Trata-se, acima de tudo, de um debate sobre uma questão de saúde pública, mas, por se ater a princípios que precisam ir a debate amplo na sociedade, o aborto é tratado no Brasil pela ótica da criminalização. A legislação aceita como legais apenas os casos de interrupção espontânea motivada por estupro, risco à vida da gestante mãe e gestação de feto com anencefalia.
A discussão apenas raspou a recente campanha eleitoral, e o fez passando ao largo da questão central — ou seja, sob a ótica de uma demanda de saúde pública. Deu-se um debate enviesado, calcado em crenças e sob o lobby de grupos de pressão que atuam sistematicamente para manter o problema dentro de seus estreitos limites. Infelizmente, tem havido mais hipocrisia que racionalização no trato de tão doloroso tema. O país precisa amadurecer em relação a esse problema e discuti-lo a fundo, tirando-o da ótica da religiosidade e trazendo-o para a órbita da saúde da mulher.
Acesse o PDF: Debate realista, editorial de O Globo sobre a questão do aborto