Principal articuladora das ações que colocaram o aborto na agenda do STF, ela é a cientista brasileira que o mundo tem parado pra escutar
(TPM, 10/01/2017 – acesse a entrevista na íntegra no site de origem)
Brasília. Julho de 2004. Era pra ser só mais um almoço entre amigas. Até que o celular de uma delas toca. Do outro lado da linha está Richard Reiter, então um diplomata da embaixada norte-americana. Ele procura pela antropóloga e pesquisadora Debora Diniz, quer saber da ação encabeçada por ela e apresentada ao Supremo Tribunal Federal pedindo o direito ao aborto para mulheres grávidas de fetos anencéfalos (sem cérebro). Debora, na época com 34 anos, era mesmo a principal articuladora da ação, mas não esperava por aquele telefonema, que sondava algo como “o governo Bush quer saber se com essa ação existe a possibilidade da liberação do aborto no Brasil”. “Não tinha dimensão do que significava”, lembra. Foi a amiga com quem almoçava, a jornalista Eliane Brum, quem a alertou da importância do que tinha acabado de acontecer.
Apesar de não imaginar que seria interpelada pelo governo americano, não faltava gente perguntando o que Debora andava fazendo. Dois anos antes, o anúncio do início de uma pesquisa comportamental sobre aborto (que mais tarde se tornaria a mais relevante feita no país) levou seu nome aos principais jornais. E o envolvimento com o tema teve seu preço. Ela era professora na Universidade Católica de Brasília quando foi demitida sem justa causa, em plena metade do semestre e por telefone. “Não tive dúvidas, foi um pedido da Igreja.” No Brasil, ser associada à descriminalização do aborto nunca foi um belo cartão de visitas. Contrariando o presente amargo que experimentava, Debora fez da demissão o estopim para uma jornada intensa – e prazerosa – na luta por direitos humanos, que segue firme e forte até hoje. “Se até ali eu não era uma militante incansável, a Igreja acabava de me fazer uma.”
“É preciso ouvir o mundo. A humanidade sempre resiste”
Debora Diniz
Foram oito longos anos até que o Supremo acatasse a ação pelo direito ao aborto em casos de anencefalia em 2012. Nesse tempo, Debora não descansou. Se tornou professora na Universidade de Brasília, onde está há 12 anos. Viajou o mundo, passou por universidades, embaixadas e governos, defendendo a importância da descriminalização do aborto. Produziu, junto com Eliane Brum, Uma história Severina (2005), documentário sobre a jornada de uma agricultora pernambucana que enfrentou o STF e conseguiu o direito, tardio (aos 7 meses de gestação), de abortar um anencéfalo. Como se não bastasse, mergulhou em outras causas. “É preciso ouvir o mundo. A humanidade sempre resiste.”
Contra Deus, o Estado e o que vier
Para ouvir mais do mundo, foi dos manicômios judiciários ao sistema prisional brasileiro, passando pelo direito de morrer até a Cracolândia. Registrou tudo em filmes, livros e artigos. Recebeu mais de 90 prêmios por eles.
No começo deste ano, quis contar outra história. A das crianças afetadas por um surto de microcefalia em Campina Grande (PB). Ali, construiu a tese pra mais uma ação no STF, a de planejamento familiar e proteção à maternidade e à infância, que inclui o pedido da interrupção da gestação se a mulher adoecida com o vírus da zika estiver em sofrimento mental. Esta entrevista antecede o julgamento da ação. Debora sabe que não se pode fazer previsões sobre o STF agora, mas tem alguma esperança: “É potente quando o ministro Luís Roberto Barroso diz que o aborto não pode ser crime pois viola direitos fundamentais das mulheres”, diz, se referindo à decisão do Supremo, de 29 de novembro, de revogar a prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina.
Debora recebeu a Tpm em Brasília, na sede da ONG que ajudou a criar há 17 anos, a Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Só naquela manhã, antes de nos encontrar, participou de uma reunião no Ministério do Desenvolvimento Social pra discutir assistência às mães de crianças com microcefalia e falou com o Fantástico sobre a nova Pesquisa Nacional de Aborto – na qual encontrou que meio milhão de brasileiras abortou em 2015.
Nas próximas páginas, a vida e as ideias de uma mulher que enfrenta Deus, o Estado e o que vier pra gritar por quem tem a voz silenciada.
Tpm. O surto de microcefalia segue entre nós, mas a Organização Mundial da Saúde tirou o aviso de emergência global sobre a questão. Por quê?
Debora Diniz. Pra ser uma emergência global, tem que ser algo não usual, extraordinário e desconhecido. Zika é usual agora, é ordinária, pois sabemos como é causada, e é conhecida. A OMS só tirou o aviso por isso. Não é que tenha deixado de ser um problema de saúde pública.
Mas o “alarme” pode voltar? Pode voltar se virar uma pandemia, que é uma epidemia de proporções globais.
Isso deve acontecer? Provavelmente não. Em muitos países não há o mosquito abundante como aqui. E em outros países também existe aborto. Então, essa é uma epidemia de lugares tropicais e pobres, onde há mulheres invisíveis aos olhos do Estado. Agora, o Rio de Janeiro e a Bahia são os dois maiores estados de pico, o próximo será o Mato Grosso.
Agora com a zika, pela segunda vez você leva uma ação ao STF. Como se emplaca uma ação no Supremo? É um processo longo. Não é só conhecer as pessoas certas, mas é isso também. Com a zika, a gente fez um filme, escrevi um livro e uma tese. É preciso um bom advogado e uma associação que emplaque, além de toda uma articulação com movimentos sociais. Nunca é uma trajetória solitária, individualista. Não dá pra dizer “foi a Debora que levou a zika pro STF”. Esse é o maior erro quando essa história é contada.
E quais são suas previsões? Quem fizer qualquer projeção sobre o Supremo neste momento mentirá. É um enigma o que está acontecendo neste país. Mas, veja, eles têm uma saída fácil, que é dizer que a associação que nos representa não é legitimada, e então nem inserir na pauta.
Por que não seria legitimada? Alguns dizem que a Associação Nacional dos Defensores Públicos [que representa o grupo encabeçado por Debora] só pode apresentar matéria de interesse da categoria, aumento de salário dos assessores, por exemplo, e não uma ação como a nossa.
A ministra Cármem Lúcia, presidente do STF, anima você? Tenho uma confiança nela por causa de seus votos anteriores. Anencefalia, união homoafetiva, educação religiosa, em todas essas matérias votou bem. E poderia fazer história sendo uma mulher num caso como esse. Agora, tenho uma informação nova. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos entrou como amigo no caso, que é quando você pede pra participar da ação. Apresentaram um relatório dizendo que proibir a mulher de abortar, nesse caso, pode ser qualificado como tortura.
(…)
Leia a íntegra da entrevista acessando o site da TPM
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