Às vésperas da discussão sobre a descriminalização ou não do aborto por mães contaminadas pelo vírus Zika, marcada para esta quarta-feira, pelo menos três ministros do Supremo Tribunal Federal deram pistas de que a proibição, atualmente prevista no Código Penal, desrespeitaria a Constituição.
(BBC Brasil, 06/12/2016 – acesse no site de origem)
Mas, diferentemente do que apontaram muitas notícias na última semana, isso não significa que há prática tenha deixado de ser crime.
É esta a avaliação da antropóloga Debora Diniz, do instituto de bioética Anis, que levou à Suprema Corte, no início deste ano, a discussão sobre direitos de mulheres contaminadas pelo zika – incluindo a possibilidade de aborto.
O grupo tem experiência no tema: há 12 anos, a equipe de Diniz também levou ao STF um pedido de reavaliação da interrupção de gestações de fetos anencéfalos (com ausência parcial ou total do cérebro). A descriminalização neste caso foi aceita pelos ministros em 2012 – o “sim” ganhou por 8 votos contra 2.
Atualmente, a legislação brasileira só permite que uma gravidez seja interrompida, além do caso acima, em situações de estupro e risco de vida da mulher.
Mas na última terça-feira (29), a primeira turma do Supremo surpreendeu ao suspender a prisão preventiva de cinco funcionários de uma clínica clandestina de Duque de Caxias (RJ) e declarar que a prática, se realizada até os três primeiros meses da gestação, não é crime.
Para o ministro Luís Roberto Barroso, que pediu para avaliar o caso a fundo, os artigos do Código Penal que proíbem o aborto até os três meses ferem direitos garantidos pela Constituição.
Ele enumera: “os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.
O ministro também argumenta que a proibição afeta principalmente as mulheres mais pobres, “que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo”.
Diniz lembra que justamente as mulheres mais pobres continuam sendo as mais vulneráveis nesta discussão – cujos efeitos passariam longe da periferia.
“Uma mulher que quiser interromper a gestação pode pedir à Justiça e um juiz pode vir a deferir o pedido dela, dizendo que o Supremo já se pronunciou. (…) Mas as mulheres que correm risco durante o aborto no Brasil não são mulheres com acesso à Justiça. Mulheres pobres não têm acesso à Justiça, não conseguem constituir um defensor, um advogado.”
Como se trata de um entendimento que pode ser seguido por instâncias menores e, para muitos, sinaliza que a mais alta corte caminha para uma futura descriminalização do aborto, a Câmara dos Deputados decidiu reagir.
Na mesma noite da decisão do STF, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Casa, avisou ao plenário que vai criar uma comissão com 34 titulares e igual número de suplentes para se posicionar sobre o tema.
Segundo especialistas, os deputados não têm poder para rever decisões do Supremo. O que eles podem, sim, fazer, é alterar leis ou a Constituição para mudar as bases usadas pelo STF para justificar suas decisões.
Leia os principais trechos da entrevista com Debora Diniz:
BBC Brasil – Como avalia a decisão do STF na semana passada sobre o aborto até os três meses de gestação?
Debora Diniz – A corte avaliava a prisão preventiva de funcionários de uma clínica de aborto, mas havia uma pergunta de fundo: o que eles fizeram deveria ou não ser crime? Ela respondeu que a Constituição garante o direito à saúde, à segurança, à integridade física e emocional, à autonomia. E que, portanto, a criminalização do aborto pelo Código Penal está errada segundo a própria Constituição.
É uma interpretação correta, é o que se espera de uma Suprema Corte. O trabalho deles é interpretar tudo o que chega ao Supremo à luz da Constituição. E o Código Penal está abaixo da Constituição.
As cinco pessoas que apareciam nesse pedido de habeas corpus estavam sendo acusadas por crime de aborto. A primeira pergunta do habeas corpus era: é preciso mantê-las em prisão preventiva? Os ministros respondem: ‘Não, elas não ameaçam a sociedade’. Mas vão além: eles mostram que, lendo a Constituição e o que ela manda, em defesa da autonomia, do direito a saúde, à segurança, o aborto não pode ser crime.
BBC Brasil – Você esperava uma posição tão contundente?
Debora Diniz – Os debates dos últimos anos mostram que esta corte vem sendo preparada na última década para entender que o aborto é uma questão urgente de saúde publica. Mas este é um caso específico. O aborto não foi oficialmente descriminalizado no Brasil, como muitos estão dizendo. Tratou-se de um caso de Duque de Caxias, relativo àquela clínica, em que se discutia a punição ou não de médicos e profissionais.
Mas este voto avançou e se disse: temos que conversar sobre o que está por trás deste pedido. De um lado, há uma dificuldade natural de entender o que aconteceu, porque o debate jurídico traz barreiras muito grandes. Mas, de outro, há má-fé de quem entende o que é o debate jurídico e transforma a decisão em um escândalo.
BBC Brasil – Mas o caso pode embasar as decisões de juízes daqui para frente, não?
Debora Diniz – Uma mulher que quiser interromper a gestação pode pedir à Justiça e um juiz pode vir a deferir o pedido dela, dizendo que o Supremo já se pronunciou.
Mas as mulheres que correm risco durante o aborto no Brasil não são mulheres com acesso à Justiça. Ainda há muita incerteza para as mulheres migrarem da clandestinidade para as cortes. Não se pode acreditar que agora haverá uma enxurrada enorme de pedidos.
Mulheres pobres não têm acesso à Justiça, não conseguem constituir um defensor, um advogado. O tempo de gestação também é curto e um processo como este pode durar mais de 9 meses.
É muito mais um momento da Suprema Corte encorpando o debate no Brasil; ainda há muitas barreiras ao aborto no país. Então, vamos com calma. O voto é muito coerente. No entanto, ao contrário do que dizem, não houve descriminalização.
BBC Brasil – E o que esperar da comissão formada na Câmara dos Deputados para avaliar o tema?
Debora Diniz – Esta é a forma padrão com que eles (boa parte dos deputados) vêm enfrentando o aborto pelo menos na última década. Então, esta não é uma reação à decisão do Supremo, porque não há nada de novo. É assim que os deputados se comportam pelo menos nos últimos dez anos.
Agora, o que efetivamente eles podem fazer em relação à decisão do Supremo? Nada. Mas eles podem, sim, tentar criminalizar ainda mais o aborto.
BBC Brasil – Como?
Debora Diniz – Com projetos como o estatuto do nascituro, a ampliação das penas às mulheres que praticarem o aborto ou a revogação das leis que permitem exceções, como em casos de estupro ou risco à gestante.
BBC Brasil – Muitos argumentam que o Supremo Tribunal Federal estaria, com decisões como esta, legislando (criando/alterando leis), que é atribuição do Congresso. Como avalia?
Debora Diniz – Não está. O STF está fazendo uma interpretação constitucional porque este é o dever dele. Eles estavam interpretando o que estava acontecendo naquele caso de Duque de Caxias, à luz da Constituição.
BBC Brasil – E qual é a expectativa, a partir de todo este cenário, para a discussão prevista para esta quarta sobre casos de zika?
Debora Diniz – A ação que levamos ao STF diz o seguinte: uma mulher está com zika e está grávida. Seu feto pode ou não ter microcefalia. Ela está em sofrimento mental por não saber o futuro do feto. Exatamente como acontece no estupro.
Então a ação defende a possibilidade de interrupção porque a mulher está em sofrimento psicológico provocado pela epidemia, que por sua vez é responsabilidade do Estado, que não conseguiu contê-la.
O que a gente pode esperar? Bom, a corte teve acesso a muita informação sobre a gravidade da epidemia de zika no Brasil. Há centenas de histórias de mulheres.
É importante que fique claro: esta não é uma ação sobre aborto, é sobre direitos fundamentais amplos, que inclui políticas públicas de direitos sexuais e reprodutivos para mulheres (como contraceptivos, pré-natal frequente e aborto) e garantias para a inclusão social de crianças após o parto.
Ricardo Senra