Direito de irlandesas e brasileiras, por Debora Diniz e Lena Lavinas

29 de maio, 2018

O pedido ao Supremo Tribunal Federal é simples: nenhuma mulher deve ser presa por ter feito um aborto

(O Globo, 29/05/2018 – acesse no site de origem)

Caiu. Caiu, finalmente, uma das mais injustas previsões constitucionais já aprovadas na Irlanda: em 1983, a 8ª Emenda Constitucional estabeleceu igualdade de direitos entre a mulher grávida e o embrião. De iniciativa da Igreja Católica, a emenda levou à total proibição do aborto, exceto em caso de risco de morte para a mulher. A lei previa prisão perpétua para todos os envolvidos na prática de aborto, pena máxima atenuada, em 2013, para 14 anos de privação de liberdade.

Esse desenho anacrônico acaba de ser banido: o aborto não é mais proibido na Irlanda. Com a revisão constitucional a caminho, desaparecem também a humilhação, o sofrimento e a clandestinidade que todos os anos levavam milhares de mulheres a buscar, num país vizinho, socorro médico ou a encomendar medicamentos pelas redes sociais, desconhecendo procedência ou segurança.

É bem verdade que, desde 1992, diante da evidência de que proibir o aborto seguro não significa proibir as mulheres de abortarem, a lei foi flexibilizada e autorizou as irlandesas a atravessarem as fronteiras nacionais para obter em outros países europeus aquilo que lhe era negado em casa. No Reino Unido, ele pode ser realizado gratuitamente até 24 semanas; na Holanda, até 22 semanas; na Islândia, até 16 semanas; na Espanha e Romênia, 14 semanas. Em dezenas de outros países, esse prazo varia entre dez e 12 semanas. Na comparação, o cenário por aqui é desolador: América Latina e Caribe é a região do mundo que mais persegue as mulheres com prisão e na qual mais mulheres recorrem à clandestinidade para o aborto. Mais prisão e mais aborto é nossa realidade.

A fé católica professada por quase 90% dos irlandeses não impediu o discernimento de que a vida das mulheres, sua segurança e dignidade não podem ser tributárias deste ou daquele credo. Essa conscientização teve um marco de indignação: a morte de Savita Halappanavar, que, em 2011, aos 31 anos, em processo de abortamento espontâneo, teve negado o direito a uma curetagem que lhe teria salvo a vida. Ganhou força e legitimidade, na coragem política do jovem primeiro-ministro, Leo Varadkar, 39 anos, médico, gay, que convocou o referendo e fez abertamente campanha pelo sim. Uma campanha animada pelos movimentos de mulheres e pela juventude, que mobilizaram todo um país para esse voto histórico.

A Irlanda não deve ser vista como distante de nós. Neste momento, a Suprema Corte brasileira também tem a oportunidade de corrigir o anacronismo do Código Penal de 1940 — o aborto entre nós é crime com pena de prisão. A relatora do caso é a ministra Rosa Weber, que convocou, para junho, audiências públicas para escutar os especialistas sobre os efeitos da criminalização. Certamente, a ministra ouvirá que é a descriminalização que reduzirá o número de abortos, que a clandestinidade aumenta os riscos e as taxas de mortalidade, que é possível fazer um aborto seguro com medicamentos, o que permitirá, ainda, forte redução dos custos decorrentes dos muitos milhares de complicações de abortos que levam anualmente a internações no Sistema Único de Saúde.

Tão importante quanto os números do aborto entre nós será contar à ministra sobre a história da Irlanda. Se nossa questão é moral e constitucional, assim também foi por lá — um país católico com intensa controvérsia jurídica sobre o aborto. Por isso, o pedido é simples: nenhuma mulher deve ser presa por ter feito um aborto. Segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, uma em cada cinco mulheres já fez um aborto na vida. Todas nós conhecemos cinco mulheres, uma delas já terá feito aborto, só que nenhuma delas deve ir para a prisão.

Como as irlandesas, nós, brasileiras, também queremos celebrar a liberdade de escolha.

Lena Lavinas é professora do Instituto de Economia da UFRJ, Debora Diniz é professora da Faculdade de Direito da UnB

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