(O Globo, 22/02/2016) TEMA EM DISCUSSÃO: O aborto em casos de microcefalia
São cada vez mais consistentes as evidências de que haja algum tipo de relação entre o vírus da zika e o aumento, crescente, do número de casos de microcefalia no Brasil. Ainda que o surto permaneça praticamente circunscrito ao país, e com incidência maior em regiões bem delimitadas, ele ainda é um mistério para os pesquisadores.
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Mesmo a Organização Mundial de Saúde, por prudência mais conservadora em aceitar como paradigma estatístico dados ainda sujeitos a comprovação, já emite sinais de que se aproxima da tese da associação direta entre microcefalia e o vírus da zika. Mas a questão permanece em aberto, e estima-se que tanto as pesquisas feitas no Brasil quanto os testes patrocinados pela OMS demandam pelo menos seis meses até que os estudos cheguem a conclusões definitivas.
Mais do que compreensível, é imperioso que tais estudos sejam mesmo criteriosos. No entanto, há uma questão objetiva que decorre desse prazo para os laboratórios apresentarem suas conclusões: o Brasil enfrenta uma epidemia, e ainda bem ativa. Os indicadores de nascimento de bebês microcéfalos mantêm uma curva ascendente, e o drama da gestação (ou do considerável risco de morte, no ventre ou pós-parto) de crianças vítimas dessa má-formação avança para dentro de um número cada vez maior de famílias brasileiras. Isto, a par de o flagelo estar sob a iminência de se espalhar para outros países, o que inclusive levou a OMS a decretar o surto uma emergência sanitária internacional.
É nesse espaço entre um surto explosivo e a perspectiva ainda fluida quanto à conclusão de estudos que devem ser adotadas ações de redução de danos. É crucial que o poder público assegure às gestantes a opção legal de decidir se desejam ou não levar à frente uma gravidez nessas circunstâncias.
Como na discussão sobre o aborto em casos de anencefalia, de alguns anos atrás, a possibilidade de garantir, em lei, a alternativa de interromper a gestação em caso de microcefalia do feto, sob comprovação ou mesmo suspeita, precisa ser analisada sem hipocrisias, dentro de seus aspectos sanitários e sociais.
O tema envolve questões subjetivas, como moral, ética, crenças etc. Mas elas não podem se antepor ao viés objetivo: a zika/microcefalia implica riscos para a saúde da mulher e do bebê. E, pelo aspecto social, não se pode esquecer a contumaz inépcia do Estado com políticas de apoio às famílias cujos bebês nascem com necessidades especiais.
Resta considerar outro viés objetivo: na verdade, o aborto nessas circunstâncias já é praticado no país, ainda que clandestinamente, por mulheres que tenham recursos para pagar, com algum grau de segurança, tais intervenções. Negar essa realidade, que veda à gestante pobre a alternativa de interromper a gravidez — ou a empurra para o perigo das “clínicas” de fundo de quintal —, é pura hipocrisia. E isso não contribui para enfrentar positivamente o problema.
Acesse o PDF: É crucial que o poder público assegure às gestantes a opção, editorial do jornal O Globo (O Globo, 22/02/2016)