Em 2007, o tema do aborto me escolheu. Ocupava havia poucos meses o cargo de ministro da Saúde, quando uma repórter perguntou minha posição sobre o assunto. Emiti a única resposta que se espera de um sanitarista: “Questão de saúde pública.
(Folha de S.Paulo, 25/10/2017 – acesse aqui)
Minhas aspas ganharam as páginas dos jornais e colocaram holofotes sobre um problema que tirava a vida de milhares de mulheres e deixava outras tantas internadas. Dez anos depois, essa realidade pouco mudou.
Em 28 de julho, a estudante Glaycy Kelly do Nascimento morreu em decorrência de um aborto clandestino na Baixada Fluminense. Investigado, o caso virou notícia.
Caso contrário, acabaria como a maior parte das mortes por aborto no Brasil: invisíveis e fora das estatísticas simplesmente porque o aborto é crime aqui.
A lei de 1940 criminaliza a mulher com o pretexto de poupar o feto. Mas, na prática, não protege nenhuma vida. Nos últimos seis anos, 415 mulheres morreram por complicações de abortos ilegais, uma média de 70 por ano.
Isso porque a atual legislação não impede a mulher de interromper uma gravidez indesejada e tampouco muda as condições que a levam a decidir colocar fim a uma gestação. Apenas a obriga —sobretudo as mais pobres— a fazê-lo em condições insalubres e arriscadas.
A Pesquisa Nacional do Aborto mostra que uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos já interrompeu pelo menos uma gravidez. Somente em 2015, foram mais de 500 mil mulheres. São 1.300 por dia, 57 por hora, quase uma por minuto.
Em 2015, complicações por aborto resultaram em cerca de 200 mil internações hospitalares, quase o dobro de hospitalizações por diabetes.
Estudo recém-publicado pelo “Lancet” e a Organização Mundial da Saúde (OMS) comprova que a proibição do aborto não é eficaz para combater sua prática. Em nações onde ele é legalizado, a taxa de mulheres que interrompem a gestação é menor.
Na América do Sul, que concentra algumas das legislações mais restritivas do mundo, 80% dos 4,5 milhões de interrupções da gravidez entre 2011 e 2014 foram realizados em condições inseguras.
Já na Europa, onde é permitido, apenas 11% dos 4,2 milhões de procedimentos colocaram mulheres em risco. Para a maior parte das europeias, o aborto é simples, acessível e seguro. Para as latino-americanas, clandestino, caro e arriscado.
Já passou da hora de encarar a descriminalização do aborto como ação de saúde pública para a urgente redução de mortalidade materna, um desafio permanente no país. Dados e estudos não faltam para justificar essa premissa. Países que legalizaram o procedimento já colhem resultados.
Veja o exemplo de Portugal, onde nasci. Na década de 70, quando o aborto era ilegal, morriam 2.000 mulheres em decorrência dos mais de 100 mil procedimentos inseguros. Em 2007, o país legalizou a interrupção da gravidez. De lá para cá, o número de abortos caiu de 18 mil para 15 mil; não há um só registro de morte nos últimos cinco anos.
Existem hoje dezenas de projetos de lei no Congresso para aumentar a punição às mulheres ou proibir os casos acolhidos na lei.
Aprovar qualquer um deles engrossaria ainda mais as estatísticas apresentadas acima. Seria um grave retrocesso, na contramão dos avanços que temos observado em países vizinhos. Em agosto, o Chile descriminalizou o aborto nos casos de risco à vida da mulher, inviabilidade do feto e estupro.
Um mês depois, a Bolívia passou a liberá-lo para adolescentes e mulheres com dependentes, reconhecendo impasses sociais e à saúde gerados por uma maternidade não planejada.
Precisamos voltar a enxergar o aborto com os óculos da saúde pública para não nos deixarmos cegar pelo fundamentalismo e julgamento moral, que, sob o pretexto de defender vidas, podem pôr ainda mais mulheres na mira de uma morte violenta e, sobretudo, desnecessária.
José Gomes Temporão foi ministro da Saúde (2007-2010) na gestão Lula e diretor-executivo do Isags (Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde) (2011-2016).