Brasileiras recorrem a pílulas via correio para abortar. O que isso diz sobre o país

12 de junho, 2016

(Nexo, 12/06/2016) ‘As mulheres que chegam a nós são exatamente as mulheres que as pesquisas mostram que abortam: todas’, diz ativista brasileira da organização Women on Web

A crise do zika vírus vivida pelas mulheres brasileiras a partir de janeiro de 2016 fez multiplicar a busca de informação no país sobre como conseguir um aborto seguro por meio de uma ONG chamada “Women on Web” (WoW).

Leia mais: Proteção à saúde e à vida das mulheres como direito, por Fátima Oliveira (O Tempo, 14/06/2016)

O serviço internacional de apoio ao direito ao aborto responde diariamente a milhares de emails de mulheres do mundo inteiro, enviados a um endereço eletrônico, com informações sobre quais vias são possíveis para realizar um aborto seguro.

A organização também fornece medicamentos abortivos via correio – inclusive para países em que o aborto é ilegal na maioria dos casos, como o Brasil. Cerca de 9.500 mulheres brasileiras contataram o serviço só em 2015, de acordo com a organização.

Leticia Zenevich, advogada brasileira que trabalha no atendimento da WoW a mulheres da América Latina, parte da África e outros países, ressalta que esse número teria sido ainda maior caso o serviço não tivesse ficado indisponível por mais da metade de 2015.

O fechamento temporário do serviço aconteceu porque a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) vem retendo, desde 2015, pacotes enviados com os comprimidos.

Pela lei brasileira, o envio dos medicamentos pela organização é ilegal por caracterizar participação no crime de aborto. Realizar um aborto também é crime para quem o faz e qualquer outro envolvido na prática, que se torna cúmplice. A pena é de um a três anos de detenção.

“Fizeram isso [barrar os remédios] ainda mais, depois do zika e com as mulheres desesperadas. A resposta [do governo] ao zika foi tentar criminalizar ainda mais [o aborto]”, afirma Zenevich.

O zika é um vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti que, se contraído por mulheres grávidas, pode causar má formação cerebral do feto. Trata-se da microcefalia.

Desde fevereiro de 2016, a WoW tem fornecido, sem custo, medicamentos abortivos para mulheres em países afetados pelo zika e declarou que 95% das pílulas enviadas às brasileiras foram apreendidas pelo Estado. Pelas regras da ONG, qualquer mulher com uma gravidez não desejada pode solicitar o envio dos medicamentos.

O impasse legal

O misoprostol e a mifepristona – as duas pílulas usadas para induzir abortos em até 9 semanas de gestação, enviadas pelo correio pela WoW – fazem parte da lista de medicamentos essenciais da OMS (Organização Mundial de Saúde) desde 2005.

“Quando uma mulher precisa de um medicamento dessa lista que não está disponível no país, ela pode recebê-lo desde que tenha prescrição médica individualizada e que ele seja para uso pessoal. Isso é Direito Internacional”, argumenta a ativista da Women on Web.

A WoW defende que a auto-administração do remédio não requer acompanhamento médico quando feita corretamente. É só em caso de complicações que deve-se recorrer ao atendimento – situação rara quando as pílulas são tomadas até a 9ª semana de gestação.

A OMS também não desaconselha a realização do aborto farmacêutico sozinha. Alerta apenas para o fornecimento de medicamentos – antiinflamatórios, por exemplo – para o alívio da dor como procedimento de rotina.

A afirmação do Direito Internacional pela ONG, de um lado, e da soberania da lei brasileira, do outro, criou um “cabo de guerra” entre as duas partes. A WoW tenta assegurar que as mulheres tenham acesso aos medicamentos, enquanto o Estado tenta barrá-los.

Acatar as diretrizes da OMS não é obrigatório, assim como outras regulamentações jurídicas propostas por organizações internacionais podem ou não ser seguidas por um país.

Em meio à crise do zika vírus vivida no início de 2016, a organização chegou a recomendar explicitamente que o aborto fosse descriminalizado no Brasil, mas nenhuma política nesse sentido foi sinalizada pelo governo.

“No caso dos medicamentos abortivos, a Anvisa barra muito mais por um critério moral do que efetivamente de segurança”, diz Marina Ruzzi, sócia da Braga & Ruzzi Advogadas – Advocacia Para Mulheres.

Ela explica, porém, que a agência pode fazê-lo baseada na soberania do direito nacional. No Brasil, a legislação só permite o aborto em caso de risco de vida para a mãe, estupro ou anencefalia (ausência total ou parcial de cérebro no feto).

Zenevich relata o desamparo de mulheres cuja gravidez indesejada não se encaixa nesses casos, e que por isso acabam recorrendo à WoW.

Estima-se que pelo menos 800 mil abortos clandestinos sejam provocados por ano no Brasil. O dado, em razão justamente da clandestinidade, não é preciso.

O misoprostol no país

O misoprostol é um medicamento registrado no Brasil, mas atualmente se restringe ao uso hospitalar: não pode ser comprado na farmácia. Seu nome comercial mais popular é Cytotec, retirado das farmácias brasileiras há mais de duas décadas. Sua venda hoje é ilegal no território brasileiro.

A única marca de misoprostol registrada pela Anvisa é a Protoskos. Já a mifepristona – a outra substância usada para realizar um aborto medicamentoso seguro – não é registrada no Brasil.

Segundo o relatório “Aborto e Saúde Pública no Brasil”, de 2009, com base em mais de 2.000 pesquisas sobre aborto no país, houve uma mudança nos métodos abortivos usados pelas mulheres brasileiras a partir do início dos anos 1990.

O misoprostol chegou ao mercado brasileiro em 1986 para tratamento de úlcera gástrica, e até 1991 sua venda era permitida nas farmácias. Foi tempo suficiente para que o medicamento ficasse conhecido como um método abortivo eficaz, mais barato que clínicas clandestinas privadas e com menores riscos à saúde da mulher.

Até a década de 1980, venenos, líquidos tóxicos, instrumentos perfurantes e a ação de parteiras eram os métodos utilizados para realizar abortos clandestinos no país. Nessa época, medicamentos eram usados para este fim apenas entre 10% e 15% dos casos. De 1997 a 2007, no entanto, o uso da substância capaz de interromper a gestação foi o método de até 84% das mulheres que fizeram abortos no Brasil.

O status do debate sobre aborto no Brasil resumido em 3 pontos

1 O PROJETO DE LEI QUE TENTA CRIMINALIZAR A DIFUSÃO DE INFORMAÇÃO SOBRE ABORTO

O PL 5069 do presidente afastado da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) tipifica como “crime contra a vida” a divulgação de meios, substância, processo ou objetos que possam causar aborto, que por enquanto é apenas uma contravenção. Também prevê penas específicas para quem pratica o aborto em outra pessoa.

O projeto foi aprovado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados em outubro de 2015 e aguarda votação do Senado.

2 A FALTA DE ACESSO AO ABORTO LEGAL

A legislação brasileira prevê acesso ao aborto apenas em três casos. Mesmo assim, mulheres brasileiras nessas situações muitas vezes não conseguem realizar um aborto pelo SUS (Sistema Único de Saúde), por falta de informação ou despreparo dos profissionais quanto ao procedimento.

Segundo Zenevich, a WoW recebe muitos pedidos de ajuda de mulheres que foram estupradas e são mal informadas nos hospitais a respeito do direito de realizar um aborto legal nesse caso. Vale lembrar que, mesmo para essas três exceções à ilegalidade do aborto no país, há diversos projetos de lei que aguardam aprovação para restringir mais ou completamente a interrupção da gravidez no Brasil.

3 A SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES

Além de perder o status de ministério no governo interino, a pasta será comandada pela ex-deputada Fátima Pelaes (PMDB-AP), que já declarou ser contra o aborto mesmo em caso de estupro – após assumir o cargo, refez a declaração, dizendo que não se oporia mais à prática.

Juliana Domingos de Lima

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