‘A maioria dos bebês permanece sem amparo’, diz especialista em zika

16 de novembro, 2016

Adriana Melo alerta que malformações decorrentes do vírus são incapacitantes

(O Globo, 16/11/2016 – acesse no site de origem)

A médica Adriana Melo ficou conhecida em todo o Brasil pela assistência a bebês com zika e suas mães no serviço pioneiro que dirige no Instituto de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto, em Campina Grande, na Paraíba. Adriana liderou o grupo que identificou no Brasil o vírus zika no líquido amniótico de gestantes com fetos microcéfalos. Há um ano, quando foi decretada a emergência sanitária, ela lamentava a falta de assistência. Hoje, não vê melhora.

O que mais lhe preocupa?

O destino das crianças afetadas pelo zika. A maioria dos bebês permanece sem amparo. Sem nada. E, mesmo quando recebem assistência, esta não é suficiente. Há uma enormidade de coisas necessárias ao atendimento dessas crianças. É muito complexo.

Qual a dimensão do desamparo?

Não sabemos. Os casos notificados não cobrem a realidade. Muitas crianças, sem assistência adequada, vão morrer sozinhas numa cama, por desnutrição, por pneumonia. Morrem de abandono. Não das mães, mas da sociedade, do Estado brasileiro. As malformações cerebrais podem impedir que a criança tenha reflexo para deglutir. Há as que não conseguem mamar. Morrem de fome porque não sabem engolir os alimentos. Outras aspiram, o pulmão se enche de fluidos. Pneumonia é comum nos bebês afetados pela zika. Se não receberem assistência desde os primeiros dias, morrem.

E a reabilitação tem que começar quando?

Logo depois de nascer. Temos hoje 117 crianças em atendimento: 86 foram afetadas pelo zika, as demais por outras causas de microcefalia, mas não poderíamos recusá-las. Algumas mães nos procuraram, mas a maioria veio referenciada por outros serviços.

Por que começar cedo é tão importante?

Porque o cérebro do bebê é muito plástico, mas se desenvolve rapidamente. Para obter alguma melhora, é preciso começar o mais cedo possível. E comprovamos que isso faz diferença.

Como isso aconteceu?

No início, quando oferecemos a reabilitação aos bebês, era quase para confortar as mães. Queríamos dar algum alento para essas mulheres tão sofridas. Não tínhamos muita esperança de avanços significativos. Felizmente, estávamos errados. As crianças reagiram bem, algumas fizeram progressos notáveis. É o caso da Catarina Maria, o primeiro bebê que atendemos com diagnóstico de problemas associados ao zika. Ela está com nove meses e se desenvolve dentro do esperado para sua idade. Mas a mãe é fisioterapeuta, a estimula demais. Estamos otimistas com o seu desenvolvimento. Depois vimos outros casos com resultados bons.

E quando não há reabilitação?

Chegou ao nosso hospital há pouco tempo um bebê de oito meses que estava morrendo porque não conseguia engolir alimentos. Ele foi operado às pressas. Precisou colocar tubos. Continua grave. Esse bebê nunca recebeu qualquer estímulo para a deglutição, apesar das deficiências no cérebro.

Qual a sua esperança?

Esperamos ter agora menos bebês afetados. Muitas mães conseguiram se proteger de uma forma ou de outra. Mas já começaram a nascer bebês dessa segunda leva de zika, filhos de mulheres que contraíram o vírus no verão passado. Temos dois bebês assim em nosso serviço. Um de 15 dias e outro com uma semana de vida. São dois meninos e já recebem estimulação.

E o conhecimento sobre o zika aumentou?

Sim, muito. Mas ainda não é suficiente ou disseminado. Não é só a microcefalia. É um conjunto imenso de lesões e anomalias no cérebro. Há bebês com o perímetro craniano normal e malformações severas no cérebro. O mais correto seria considerar que o zika causa microencefalia, que é a diminuição do cérebro propriamente dito e não da caixa craniana. E há as lesões invisíveis nos exames de imagem. Outras que só serão percebidas à medida que o bebê cresce. Por isso, é fundamental acompanhar os filhos de mulheres que tiveram zika na gestação até pelo menos 3 anos de idade. O problema é que isso não é feito em todo o país e ainda há casos de criança gravemente afetadas na gestação e não detectadas. Temos uma criança em atendimento que só descobrimos porque fomos analisar placentas de hospitais da região para pesquisa e vimos a de uma mulher infectada no início da gestação. Descobrimos quem era e passamos a atender o bebê.

O que mais lhe revolta?

A dívida não paga da sociedade brasileira com as mães das crianças afetadas pelo zika. Essas mulheres foram vítimas de uma doença que poderia ter sido evitada. Seus filhos nasceram com sequelas devastadoras por toda a vida. Elas tiveram a grandeza de permitir que os filhos doassem sangue, fizessem exames, se submetessem a procedimentos, mesmo quando eles próprios não teriam qualquer tipo de benefício. Muitas perderam os filhos logo após o nascimento. E não receberam nada em troca, nenhuma assistência. O Brasil deve demais a elas. Não lhes deu nada.

Que conselho a senhora dá às gestantes?

Que tenham cuidado com a zika e com a chicungunha. As coisas estão muito ruins. Chegamos a uma situação em que as mulheres precisam se proteger a todo custo do mosquito. No primeiro trimestre, o risco maior é o zika. E na hora do parto, do chicungunha.

Como o chicungunha afeta o bebê?

O chicungunha pode passar da mãe doente para o filho no momento do parto. Tivemos dois casos assim, de bebês que tiveram encefalite causada por chicungunha contraída da mãe e os dois entraram em convulsão logo após nascer. Um deles morreu em alguns dias. O outro conseguimos salvar. E o contágio não é só pelo sangue, mas também pelas secreções da placenta. As gestantes têm que evitar dar à luz com chicungunha. Quando for possível, é melhor adiar o parto.

Como está o serviço que oferece?

No limite. Eu mesma estou falida física, emocional e financeiramente. Tirei do meu bolso, mas não dá mais. Só recebo parabéns, mas precisamos de dinheiro para manter o atendimento.

E qual o seu sonho?

Construir um centro de reabilitação, assistência e pesquisa. Só 17 das 117 crianças de nosso serviço são de Campina Grande, as outras vieram do sertão. Algumas precisam viajar 300 quilômetros com uma criança doente nos braços. E em algumas cidades, prefeitos que não foram reeleitos cancelaram o transporte para essas mães. Elas não têm como trazer os filhos, terão que esperar até que os novos prefeitos assumam. Mas esses bebês não podem esperar. Dois meses sem atendimento podem selar seu destino, para pior. Precisamos de uns R$ 200 mil e alguns equipamentos para ampliar o centro. Não vejo perspectiva.

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