Simone de Beauvoir, filósofa francesa e símbolo do feminismo, disse muitos anos atrás que “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”, frase que tem se mostrado sempre verdadeira no Brasil e que para mim ilustra muito bem a maneira que lidamos com a epidemia de zika, que atinge as mulheres em cheio e que foi gradualmente saindo dos holofotes.
(Emais, 20/07/2017 – acesse no site de origem)
Epicentro da epidemia no mundo e prestes a receber as Olimpíadas, o Brasil parecia dar uma resposta à zika em 2015 e início de 2016, quando a doença ainda era emergência global em saúde. De lá para cá, no entanto, a questão foi sendo varrida pra debaixo do tapete e nunca mais falamos nisso. O país entrou em crise econômica, congelou os investimentos públicos para os próximos anos e os principais elementos causadores dessa e outras epidemias continuaram intactos, sendo apenas uma questão de tempo até a próxima onda de zika atingir novamente o país e sua população mais vulnerável.
Só que epidemias sempre foram uma constante no Brasil e nem por isso nos preocupamos em resolvê-las, o que não foi diferente com a Zika. A diferença é que na zika o problema não acaba com o mosquito. Há um componente humano muito forte e que, ignorado pelo Estado, faz nascer uma tragédia. As consequências do vírus no desenvolvimento do feto e nas vidas das mulheres e famílias afetadas são maiores do que a ciência dá conta.
Ano passado escrevi sobre o assunto após um seminário organizado pelo Instituto Patrícia Galvão que abordava exatamente isso. Fiquei muito tocada, mas o tema gradualmente se dissipou e, enquanto nós falávamos de outros assuntos, a zika fez mais vítimas e o Estado diminuiu o apoio para as famílias enfrentarem uma epidemia causada por ele. Na semana passada, a Human Rights Watch divulgou o relatório “Esquecidas e desprotegidas: o impacto do vírus zika nas meninas e mulheres do Nordeste do Brasil”, apontando que falhamos em combater a epidemia e que mulheres e famílias já tão vulneráveis estão completamente abandonadas. Além disso, faltam ações a longo prazo para prevenir futuros surtos.
O relatório foi amplamente coberto pela imprensa, de modo que não me estenderei nele – embora recomende e muito sua leitura. O que quero chamar a atenção é para a tradição brasileira de omitir o viés de gênero quando nos é conveniente. No caso da zika, o impacto disso é incalculável.
No momento mais crítico da epidemia, em 2016, o Brasil já recebia a recomendação de órgãos internacionais para legalizar o aborto porque já era evidente como as mulheres deveriam ter a escolha de interromper uma gestação em um contexto em que nada se sabia sobre a doença, exceto que afetava especialmente a mulheres grávidas e seus bebês. O Brasil fez-se de surdo, como havia feito outras vezes quando recebeu a mesma recomendação em diferentes contextos. Desviamos o foco do assunto para parecer que tudo se tratava de ninguém querer dar à luz a filhos e filhas com deficiência. E nunca foi sobre isso e sim sobre um contexto de incerteza e sofrimento em que as mulheres eram culpabilizadas por terem adoecido pela zika, especialmente se grávidas. E em muitos casos elas nem sabiam como evitar a doença – menos ainda tinham insumos para o planejamento familiar.
Nas regiões mais vulneráveis de nosso país, não por acaso as mais afetadas pela zika, falta garantir muita coisa. A efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é uma delas. Falta informação e acesso a métodos contraceptivos, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (incluindo o vírus da zika), planejamento familiar. Falta o básico também: falta pré-natal, falta repelente, falta informação. Falta esgoto tratado, sobra descaso.
As milhares de crianças nascidas com síndrome congênita do zika (pelo menos 2.653 até abril de 2017) pagam o preço da omissão de anos a direitos humanos básicos, especialmente o das mulheres. E continuam a sofrê-lo, já que faltam serviços de referência, transporte para levar as crianças ao tratamento, auxílio financeiro. Falta todo tipo de apoio, falta compreender o que implica, para essas famílias, ter uma criança que demande cuidado por toda a vida.
Fora isso, os cuidados com a casa e crianças em geral recaem nas costas da mulher*. Não faltam relatos de mulheres que largaram seus empregos ou estudos após o nascimento da criança, o que afeta diretamente a renda da família já que, pela milésima vez, o Estado não cumpre com suas obrigações. E as outras crianças da família? E a vida da mulher? Elas são desproporcionalmente afetadas por uma epidemia causada pelo fracasso do Estado brasileiro. E todas as vezes que isso foi alertado, nós ignoramos. Na epidemia de zika as mulheres foram apenas as culpadas – por não usar repelente, por não armazenarem água corretamente, por engravidar -, mas não receberam nenhum apoio.
Para elas, a zika nunca deixou de ser uma emergência.
Esse é um assunto MUITO complexo para ser abordado em apenas um texto de blog. O intuito aqui é apenas lembrar a todos que a epidemia de zika NÃO ACABOU, que há milhares de famílias sofrendo e com amparo insuficiente dos governos. E outras tantas ainda sofrerão. Não fechemos os olhos.
*O relatório da Human Rights Watch aponta, entre outras coisas, a necessidade do envolvimento dos homens no cuidado das crianças, para que as responsabilidades não recaiam apenas nas mães. Também recomenda que o Estado fomente isso.
Nana Soares é jornalista e focada em direitos da mulher. Quando não está escrevendo, faz consultoria para pessoas e empresas que querem fazer do mundo um lugar mais igualitário. É co-autora da campanha contra abuso sexual do Metrô de São Paulo e quer mostrar que feminismo não é palavrão.