O G1 acompanhou Maria Lys desde os oito meses e em três anos, a criança pouco evoluiu. Número de novos casos de microcefalia na Paraíba caiu 92% em 2017.
(G1/PB, 11/11/2018 – acesse no site de origem)
A entrada do novo apartamento de Camilla Raquel é ventilada. Uma sala, cozinha, dois quartos, um banheiro. No bebê-conforto ao lado do sofá está Maria Lys. Três anos, mas ainda se comporta como uma recém-nascida: não anda, não engatinha, não fala. Reage com sorrisos e choros. Tem microcefalia causada pelo vírus da zika, hoje chamada de Síndrome Congênita do Zika Vírus. Faz parte das 203 crianças confirmadas com a doença na Paraíba, desde 2015. “A gente virou estatística. Somente. Mais nada”, lamenta Camilla.
Neste domingo (11), completa três anos que o Ministério da Saúde decretou a epidemia de microcefalia como Situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. Os números diminuíram drasticamente.
Em 2015, de acordo com a Secretaria de Estado da Saúde (SES), foram 97 casos confirmados de microcefalia e 96 em 2016. No entanto, em 2017 o número caiu 92%, com apenas 7 casos confirmados. E três confirmados em 2018. Lys faz parte dos primeiros registros e pouco evoluiu em relação às crianças que nasceram em 2018.
Insegura quando descobriu que a filha nasceria com microcefalia, Camilla, hoje com 24 anos, era só medo e angústia. Enchia os médicos de perguntas, mas até hoje não recebeu respostas sobre quando vai ouvir da boca da sua filha a palavra “mãe”. Hoje está mais tranquila. Ama a filha independente da diferença. Dá o mesmo tratamento à filha mais velha, de seis anos, que atualmente mora com a avó.
Às vezes quero nem pensar no futuro, porque dá vontade de chorar. Mas agora eu estou mais acostumada a cuidar dela, nem vejo ela como uma pessoa especial.
— Camilla Raquel, mãe de Maria Lys
Apesar dos obstáculos e das dificuldades, a única coisa que importa para Camila é estar com Lys. “Hoje não me vejo sem minha filha. Hoje eu aceito ela de qualquer jeito. Cada vez que ela se interna é uma dor. Toda vez que vou para o hospital com ela, penso se vou voltar com ela pra casa. Só em pensar dá vontade de chorar.
8 meses
Era 2016 e Camilla tinha 22 anos. No relógio marcava 9h quando a avó de Lys abriu a porta. Camilla ainda dormia porque, naquela noite e em algumas semanas anteriores, não conseguiu pregar o olho. Maria Lys demonstrou em choro uma irritação que nem mesmo a mãe compreendia. As duas só conseguiram dormir quando o dia amanheceu, numa nova tentativa de recomeçar.
Camilla deu um jeito qualquer no cabelo, vestiu uma roupa e chegou ao terraço. Ainda sem Lys nos braços, contou como tudo começou. Poucos minutos depois, os choros de Lys recomeçaram. Queria o colo da mãe: único lugar que encontrava tranquilidade e ficava em silêncio.
A gravidez veio junto com os noticiários alertando para o vírus da zika. Começou a temer a gestação. Postergou. Apenas aos nove meses recebeu a notícia: “Mãe, você teve zika?”, o médico perguntou. Nesse momento, Camilla abaixou a cabeça e chorou. Maria Lys nasceria com microcefalia.
Na primeira oportunidade foi até a médica que acompanhou a gravidez. Ouviu que a filha nasceria bem e que só ao longo do tempo saberia as diferenças de Lys em relação aos outros bebês. Maria Lys nasceu com um perímetro cefálico de 26 cm.
Naquela manhã, Maria Lys já tinha oito meses. Já apresentava espasmos, convulsões e rigidez muscular. Também não sustentava a cabeça. Com as mãos sempre fechadas, os membros rígidos, não sentava, não engatinhava. Camilla se tornou as mãos e os pés da segunda filha. Era atendida mensalmente por uma pediatra e fazia terapias diariamente.
Foi até a cozinha, preparou o leite. Enquanto isso, Maria Lys estava deitada na cama ao lado do cômodo. Apesar das várias tentativas, a menina tinha dificuldades de sugar o leite. Morava com a mãe e com a outra filha, na época com quatro anos. Perto de meio-dia, arrumou a criança, então com quatro anos, para levar à escola. Enquanto isso, Lys se acalentava nos braços da mãe.
É só comigo, no braço, direto. Ela não fica em nenhum canto se não for no braço. Passo 24 horas com ela no braço
— Camilla Raquel, em 2016
A renda da família sempre foi um tropeço. Já recebia o Benefício de Prestação Continuada do Governo Federal e contava também com ajuda da mãe, a única renda fixa da família. Do pai da criança, recebia apenas o básico. O carinho, a presença e o amor foram dispensados por eles.
A saudade de quem Camilla era antes de Lys foi inevitável. Também rotina na sua vida. Mirava o espelho e sequer se reconhecia. Sem vaidade, sem tempo. “É como se todo mundo estivesse indo para frente e eu estivesse parada ainda. Parei no tempo”, disse.
Lys não tinha coordenação motora, nem o corpo firme. Tinha estrabismo e Camilla precisava estimular a criança semanalmente para que o problema não aumentasse. Na época, Camilla pensou em desistir dos tratamentos, mas a vontade de continuar foi maior.
1 ano e oito meses
Em 2017, Lys com um ano e oito meses, Camilla Raquel continuava sem trabalho e sem estudar. As 24 horas do dia eram dedicadas a Maria Lys. Com 23 anos, gastava cerca de R$ 1 mil, a cada três meses, para viajar a Fortaleza para fazer o acompanhamento médico da filha. Lá, Lys recebia tudo gratuitamente: exames, terapias, acompanhamento. Além de carrinho, cadeirinha, óculos, órtese, tudo que ela poderia precisar.
Pela Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, Lys recebia atendimento público de alta qualidade, com tecnologia e humanismo. Com as demoras para conseguir realizar os exames na Paraíba, preferia a viagem de 680 km. O Sarah não oferecia auxílio transporte. O Tratamento Fora do Domicílio (TFD), pelo SUS, segundo Camilla, não aprovava no programa pacientes com microcefalia.
Na época, o Ministério da Saúde esclareceu que o TFD é um benefício concedido a pacientes atendidos na rede pública ou conveniada do SUS que necessitam de assistência ambulatorial e hospitalar de média e alta complexidade fora do local onde reside. “O estado da Paraíba […] conta com dois Centros Especializados em Reabilitação (CERs), que atendem casos de microcefalia”, justifa pasta.
Um novo obstáculo ganhou a vida da pequena. Com problema de deglutição, Lys começou a usar espessante em todos os líquidos que ingere. “Ela também perdeu sucção com o passar do tempo”, disse Camilla. Fazia terapias em quatro locais, porque as terapias não eram concentradas em apenas um local. Para os tratamentos, iam as duas de ônibus todos os dias.
Com todas as dificuldades de transporte e locais de tratamentos, em 2017, a Prefeitura de João Pessoa disse que o atendimento multiprofissional para crianças com microcefalia acontecia desde o dia 30 de junho no Centro de Referência Municipal de Inclusão para Pessoas com Deficiência (CRMIPD), com uma equipe formada por fonoaudiólogo, neuropediatra, psicólogo, psicopedagogo e assistente social. Quanto às passagens de transporte público, a SES esclareceu que essa foi uma demanda que a gestão ouviu por parte das mães, mas não se comprometeu em fornecer.
2 anos e onze meses
Estamos em 2018. Com dois anos e oito meses, a vida de Lys e de Camilla pouco mudou. A pequena continua sem engatinhar, sem andar e sem falar. Expressa-se pelo sorriso e pelo choro. Hoje, só faz o tratamento três vezes na semana, em dois lugares, porque cresceu muito e ficou pesada. Camilla não consegue mais levar a filha de colo, no ônibus, e muitas vezes falta dinheiro para ir de transporte por aplicativo. Há um ano também passou a usar óculos para conter o estrabismo. O pescoço continua sem sustentar a cabeça.
Se antes chorava sem parar, e não ficava em nenhum lugar, senão nos braços da mãe, hoje tranquilizou. Fica em um bebê-conforto sem chorar. Camila já consegue dar conta da rotina quando está em casa, mas quando precisa colocar os pés fora de casa com a filha, os obstáculos aparecem.
Crescida e pesada, Camila já não consegue passar muito tempo com Lys nos braços. Para ir de ônibus para as terapias, o trabalho é dobrado. Longe, ônibus cheio, bolsa nos ombros, Lys nos braços. Prefere pagar um transporte por aplicativo, quando pode. “Tá muito ruim andar com ela de ônibus, porque ela tá muito grande e pesada. E os ônibus são muito cheios. Às vezes deixo de ir por falta de dinheiro”, conta Camila.
Durante a semana, fica na casa da mãe, no bairro de Mangabeira. Nos fins de semana, vai para o apartamento que ganhou do programa Minha Casa, Minha Vida, no Colinas do Sul. Fora essa ajuda, Camila recebe apenas o benefício do Governo Federal, no valor de um salário mínimo. Segundo ela, a quantia não é o suficiente para manter a vida de Lys.
Também por conta do dinheiro, Camilla não foi mais a Fortaleza desde o início do ano para os tratamentos gratuitos de Lys.
Desafios da rotina
O pai de Lys a viu pela última vez em 2016. “Não tem contato nenhum com ela. O dinheiro que ele dá é porque coloquei na Justiça. Só dá para dois pacotes de fraldas e ainda tenho que completar”, explica.
Camila não estuda, nem trabalha. Não consegue se ausentar da filha por uma questão mesmo de necessidade. No ano que vem pretende fazer um curso superior. Quer fisioterapia, para cuidar cada vez melhor de Lys. Tem a mãe ao lado que ainda consegue dar à filha dias de folga.
Eu ainda consigo me dar o prazer de sair no fim de semana, porque eu tenho uma mãe que às vezes eu nem sei agradecer o que ela faz por mim, às vezes não falo o quanto gosto dela, o quanto ela me ajuda, às vezes acho que sou muito mal agradecida
— Camilla Raquel
A mãe também ajuda financeiramente. Nas últimas semanas, Lys esteve doente e precisou ser internada. Sem dinheiro, precisou se virar com o cartão de crédito de outras pessoas. “Ia pedir ao pai dela, mas sabia que ele não ia dar, nem perco tempo”, disse.
Antes se incomodava com essa ausência, mas hoje não sente mais nada. “É como se para ele e para a família, ela não existisse. Agora eu sei que mais para frente quem vai pagar é ele. Quem cuida da gente na velhice é os nossos filhos e quem está perdendo é ele. Ele que perde de ver, de conviver, de ver o sorriso dela, o crescimento”.
O espessante para ajudar a engolir líquidos continua sendo rotina na vida de Lys. “Eu gasto mais do que eu ganho. Porque minha mãe ajuda. O espessante é R$ 70 e tenho usado bastante. Além do remédio, o Rivotril, tem o transporte para os atendimentos”, declarou.
O que Camilla precisa mesmo é de apoio. Ela conta que já deu entrada na Prefeitura com um pedido por uma cadeira adaptada para Lys, já que o custo é alto e ela não tem condições de arcar com ele. “O prefeito disse que ia fazer a licitação para todas as mães, todas as mães deram o documento, mas foi passado pra gente que não tem previsão”, disse. O G1 questionou a Prefeitura de João Pessoa sobre o assunto, mas não obteve resposta.
A cadeira ajudaria Camilla não apenas no transporte da filha. Mas, principalmente, ajudaria Lys a corrigir a postura e respirar melhor. “Não é só uma questão de facilitar a rotina, é também para melhorar a saúde dela”, disse.
Camilla e outras mães também pediram à Prefeitura um auxílio no transporte para as terapias. Segundo ela, se a gestão tivesse investido em um Centro, com todos os tipos de terapias, seria mais fácil também fornecer um auxílio-transporte. “Eles não olham mais pra gente. No começo, a mídia toda se voltou pra gente, o governo disse que ia ajudar. Hoje ninguém nem fala mais. Quando essas crianças nasceram, era para terem se preparado”, desabafa Camilla.
A Prefeitura de João Pessoa, por meio da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), esclareceu que em relação ao auxílio no transporte, tem sido uma demanda inviável para o município, pois cada uma das crianças tem tratamentos específicos e em dias específicos.
Sobre os tratamentos, explicou que João Pessoa oferece atendimento multiprofissional para crianças com microcefalia no Centro de Referência Municipal de Inclusão para Pessoas com Deficiência (CRMIPD) com uma equipe formada por fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e neurologista. Além disso, é oferecido atendimento psicológico para as mães das crianças e suas famílias foram beneficiadas pela Prefeitura de João Pessoa com casas próprias.
O que mais pesa é a questão de não poder dar uma qualidade de vida para minha filha e saber que eles têm obrigação de fazer isso e eu não tenho dinheiro, não tenho, não consigo”, Camilla desabafa, sem impedir as lágrimas. “A gente não pediu pra nossos filhos nascerem assim. É muito ruim sentar numa reunião e eles fazerem pouco caso”, completou.
Até o final do ano, segundo a Prefeitura de João Pessoa, será entregue o novo serviço para assistência às crianças com microcefalia e suas famílias. “O Centro Dia funcionará nos turnos da manhã e tarde e atenderá crianças com microcefalia de 0 a 6 anos. No centro, que funcionará como uma espécie de creche exclusiva à essas crianças, será ofertado alimentação, serviço de berçário, acompanhamento multidisciplinar com psicólogos, nutricionistas, terapeuta ocupacional, cuidadores, técnicos de enfermagem, enfermeiro. Ao cuidar da criança durante um turno ou em período integral (dependendo do caso) o Centro Dia irá possibilitar que a mãe/pai possa trabalhar ou realizar alguma outra atividade naquele período”, disse a nota da SMS.
Associação de Mães de Anjos da Paraíba (Amap)
Camilla faz parte da Amap junto com outras mães de João Pessoa e de toda Paraíba. São pelo menos 100 integrantes em busca de ajuda. Vivem de doações de fraldas, leite e também dinheiro. Ainda não têm sede fixa, mas se reúnem no Instituto dos Cegos onde acontecem algumas terapias. Quem quiser ajudar as mães, pode entrar em contato com Janine, uma das integrantes do grupo, através do telefone 83 99881-6823.
Por Dani Fechine, G1 PB