Para o agente comunitário de saúde, Clara é uma cidadã exemplar: ela aprendeu tudo o que pode fazer para prevenir que mosquitos proliferem em sua casa e o faz com perfeição. Falamos com ela numa comunidade localizada na zona central do Recife em outubro de 2016. Ela descreveu como lavava e cobria com diligência suas caixas-d’água e nos disse que seus esforços tinham sido até mesmo reconhecidos pelos agentes ambientais. “Parabéns”, disseram a ela durante a última inspeção.
(O Globo, 16/07/2017 – acesse no site de origem)
Clara, porém, está frustrada. Seus esforços para manter as coisas limpas em casa parecem inúteis quando ela olha o que está acontecendo do lado de fora. “Eu tenho uma privada com descarga na casa, e a água vai diretamente pra dentro do rio. Nós não temos água parada aqui na casa, mas o rio está bem atrás de nós”.
Às margens de um rio, a área em que vive é um terreno fértil para a proliferação de mosquitos.
Nos últimos dez meses, nós pesquisamos o impacto que a epidemia de zika teve nas mulheres, meninas e famílias no Nordeste do Brasil. Entrevistamos 183 pessoas, incluindo 98 mulheres e meninas para um novo relatório da Human Rights Watch.
O surto expôs antigos problemas de direitos humanos no Brasil que, por sua vez, agravaram sobremaneira o seu impacto. O vírus zika é mais frequentemente transmitido por meio da picada do mosquito Aedes aegypti infectado. O clima quente e úmido do Nordeste brasileiro, com as mudanças climáticas como pano de fundo, é um cenário ideal para a proliferação do mosquito. No final de 2015 e início de 2016, as autoridades identificaram uma relação entre os bebês nascidos com microcefalia e o surto do vírus.
As autoridades brasileiras enfrentaram um teste de fogo. Décadas de subinvestimento nos serviços públicos de água e esgoto na região mais pobre do país exacerbaram a proliferação deste mosquito. Os esforços para controlar a sua proliferação na esfera doméstica — responsabilidade que muitas vezes recai sobre mulheres e meninas — eram difíceis e, muitas vezes, insuficientes.
À medida que o vírus se disseminava, mulheres e meninas lutavam para evitar gestações não planejadas. Uma vez grávidas, muitas não obtiveram informações adequadas sobre como prevenir a transmissão de zika durante a gravidez — causando ansiedade e estresse.
A criminalização do aborto no Brasil força mulheres e meninas que desejam interromper uma gravidez a recorrerem a procedimentos clandestinos e, muitas vezes, inseguros. Alguns médicos nos contaram casos de mulheres e meninas que utilizaram ácido ou outros métodos inseguros no ano passado para tentar induzir o aborto.
As mulheres grávidas e as meninas com quem falamos estavam com medo de contrair zika. Muitas, especialmente de comunidades pobres, disseram que nem sempre podiam comprar repelente. E são normalmente mulheres de lugares que sofrem com os piores sistemas de água e esgotamento sanitário e, portanto, estão mais expostas aos mosquitos.
Assim, inevitavelmente, são algumas das famílias mais pobres do Brasil que estão lutando para criar filhos com síndrome de zika sem o apoio de que precisam. Um pai nos disse que gastava quase todo seu salário mensal em medicamentos para seu filho. Muitas mães com quem falamos tiveram que deixar seus empregos para garantir que seus filhos tenham acesso a cuidados adequados, viajando longas distâncias, muitas vezes todos os dias, para encontrar os serviços de saúde de que precisam.
O Ministério da Saúde declarou recentemente o fim da emergência nacional para o zika. Mas, para essas comunidades que sofrem com infraestrutura inadequada de água e saneamento, a crise de saúde pública permanece.
Quando os governos negligenciam os direitos das pessoas — à água, ao saneamento e à saúde — zika e outras doenças encontram espaço para proliferar.
O fim de uma emergência não é momento para relaxar. Agora vem o trabalho duro de impedir a próxima.
Amanda Klasing é pesquisadora e João Bieber, consultor da Human Rights Watch