Especialistas da ONU alertam sobre violações aos direitos reprodutivos em visita inédita ao Brasil

Rio de Janeiro – Mulheres defendem legalização do aborto e protestam contra CPI na escadaria da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

31 de julho, 2025 Por Nem Presa Nem Morta

Missão do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Discriminação contra Mulheres e Meninas percorreu três capitais entre 7 e 11 de julho para ouvir autoridades, especialistas e movimentos feministas sobre retrocessos no acesso ao aborto legal, violência institucional e violações de direitos humanos

Segundo um novo estudo do Centro Internacional de Equidade em Saúde da Universidade Federal de Pelotas, divulgado recentemente na Folha de S.Paulo, 1 em cada 23 adolescentes de 15 a 19 anos dá à luz no Brasil anualmente. De 2020 a 2022, o país registrou mais de 1 milhão de nascimentos vindos de gestantes nessa faixa etária. Dos 10 aos 14 anos, quando qualquer relação sexual é estupro, o número é de 49 mil nascimentos. Em vez de proteção e acolhimento, o que essas meninas encontram é o silêncio, a omissão e o peso de uma criminalização que deveria envergonhar o país.

“É definitivamente uma questão de igualdade de gênero. Respeitar, proteger e garantir os direitos humanos significa revisar a criminalização do aborto e assegurar que profissionais não impeçam procedimentos por objeção de consciência. O Estado tem obrigação de garantir serviços disponíveis e acessíveis”, afirmou Ivana Krstić, integrante do Grupo de Trabalho da ONU sobre Discriminação Contra Meninas e Mulheres.

A afirmação da especialista foi feita no dia 7 de julho, em São Paulo, durante o seminário que abriu uma missão especial de especialistas do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Discriminação contra Mulheres e Meninas ao Brasil. Entre 7 e 11 de julho, elas percorreram três capitais — São Paulo, Brasília e Goiânia — para encontros fechados com organizações feministas, representantes do poder público, especialistas e defensorias públicas.

Com agenda inteiramente construída pela sociedade civil brasileira, a visita teve como objetivo oferecer subsídios ao trabalho internacional do GT da ONU, a partir da escuta direta de movimentos e instituições que atuam com justiça reprodutiva. A presença das especialistas reforça a preocupação internacional com os retrocessos recentes no Brasil no acesso ao aborto legal, na saúde pública e no enfrentamento à violência institucional contra mulheres, meninas e pessoas que gestam.

Organizada por um conjunto de organizações feministas e de direitos humanos – Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Conectas Direitos Humanos, Campanha Nem Presa Nem Morta, Criola, Center for Reproductive Rights, Ipas – Parceiras pela Justiça Reprodutiva e Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) –, a missão representou um marco para o campo feminista no país, que conseguiu articular, com autonomia, uma escuta qualificada com o sistema ONU em um momento crítico para os direitos reprodutivos no país.

“Vivemos um cenário de enorme fragilidade institucional no enfrentamento dos temas ligados à justiça reprodutiva e ao direito ao aborto, agravado pela presença crescente de forças retrógradas nos espaços de decisão política”, afirma Laura Molinari, da campanha Nem Presa Nem Morta.

Embora as reuniões não resultem em um relatório oficial, as informações coletadas orientarão futuras ações do Grupo de Trabalho. O conteúdo dos encontros será incorporado ao monitoramento global da ONU sobre o Brasil e poderá subsidiar posicionamentos em fóruns internacionais.

“Estamos vendo retrocessos graves no Brasil, onde quem garante o acesso aos direitos é perseguido. Estamos com vocês”, afirmou Laura Nyirinkindi, presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre Discriminação contra Mulheres e Meninas.

Em fevereiro deste ano, o mesmo Grupo de Trabalho, juntamente com outros Procedimentos Especiais da ONU, enviou uma comunicação ao Governo do Brasil expressando preocupações em relação ao Projeto de Lei 1904/2024 e à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 164/2012, conhecidos como os “PLs do Estupro”, que eliminariam o aborto legal no Brasil. Confira o comunicado aqui.

Três capitais, uma realidade em comum

Nos encontros, as especialistas ouviram denúncias sobre o desmonte de serviços, a perseguição a profissionais da saúde, a ausência de políticas públicas e a crescente influência de grupos fundamentalistas nas estruturas do Estado. Os relatos escancararam o abismo entre o que determina a legislação brasileira sobre aborto legal e a realidade vivida por meninas, mulheres, pessoas trans e profissionais do SUS. Os eventos também destacaram a omissão dos poderes públicos e o papel ativo do sistema de justiça na negação de direitos.

Para as entidades organizadoras, a visita foi um passo estratégico para fortalecer a atuação feminista em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, tanto no campo nacional quanto internacional. A mobilização para a agenda e a qualidade dos debates demonstraram a força política do campo progressista frente a um cenário de ofensiva conservadora.

“Essa missão reafirma a capacidade de articulação do movimento feminista brasileiro em pautar violações de direitos nas maiores instâncias internacionais”, comenta Amanda Rodrigues, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).

Em São Paulo, os debates destacaram o fechamento de serviços de aborto legal, a perseguição a profissionais da saúde e os impactos da violência de Estado sobre o acesso à saúde e à dignidade das mulheres, especialmente no sistema prisional.

“Antes do fechamento do serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, era possível encaminhar casos de interrupção legal da gestação evitando a justiça. Com o fechamento do serviço e não havendo outro serviço em São Paulo que realize aborto acima de 22 semanas, precisamos judicializar muito mais casos.” comenta Tatiana Fortes, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

“As pessoas transmasculinas e não binárias estão fora das narrativas. Não sabem se serão recebidas, não se veem nas informações nem da militância nem do Estado”, diz Ale Mujica, do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT).

Em Brasília, foram discutidos o aumento da mortalidade materna, reforma obstétrica, a ausência de implementação de normas técnicas que garantem o aborto legal e os riscos trazidos por propostas legislativas em tramitação no Congresso Nacional.

“O Caso Alyne Pimentel, que em 2011 levou o Brasil a ser condenado internacionalmente, revela a face cruel do racismo patriarcal cis heteronormativo: mulheres e meninas negras, pobres e periféricas continuam morrendo por racismo obstétrico, abortos inseguros e negligência estatal. Mais de uma década depois, o poder público ainda falha em implementar políticas efetivas, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, garantia do aborto legal, serviços de saúde adequados, perpetuando um ciclo de violência e apagamento dessas vidas, por mortes evitáveis”, comenta Mariane Marçal, Assistente de coordenação de projetos e incidência política de Criola.

“Há um projeto político não só de ausência, mas de políticas públicas de morte. Eles estão organizados e bem financiados”, alerta Amanda Rodrigues, do ITTC.

“Estamos falando de crianças. Crianças de 10, 11 anos, que deveriam estar brincando, estudando, e não tendo que lutar para ter acesso a um direito garantido por lei”, diz uma das defensoras participantes da reunião com parlamentares e movimentos sociais.

Já em Goiânia, o evento destacou os impactos estruturais da negação do aborto legal para meninas vítimas de violência sexual, relembrando o caso da criança de 11 anos que, em 2023, precisou recorrer à Justiça para garantir o direito previsto em lei, cujo desfecho mobilizou organizações locais e nacionais.

“O caso da menina de Goiás parecia um filme de terror. O sistema de justiça estava contra ela. Só conseguimos vencer porque havia uma rede de mulheres valentes e uma Defensoria Pública preparada”, comenta Vitor Albuquerque, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

“Esses casos não chegam a virar estatística. A rede não consegue mapear essas situações, e, quando chegam ao serviço de saúde, os profissionais não estão preparados. Por mais que tenhamos trabalhado por anos nas políticas contra a violência, essa política não chega nas mulheres pretas”, diz Sonia Cleide, do Grupo de Mulheres Negras Malunga.

“Não é fácil para mulheres negras estar no atendimento, porque quando algo acontece, a cobrança vem em cima das mulheres negras”, completa.

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