Estado brasileiro não garante acesso ao aborto para vítimas de estupro

08 de dezembro, 2017

Alguns dos estados brasileiros com maior registro de violência sexual são os que menos garantem o direito das mulheres de interromperem legalmente a gravidez

(Galileu, 08/12/2017 – acesse no site de origem)

Era uma noite de julho de 2016 quando Paula (nome fictício), 27 anos, saiu da faculdade e foi estuprada por um desconhecido em Foz do Iguaçu, no Paraná. Ela só conseguiu ficar em silêncio. Sentiu medo e vergonha, e não registrou boletim de ocorrência nem contou aos amigos sobre a violência sofrida. “Estava muito abalada”, lembra. Só queria tentar levar uma vida normal outra vez.

Pouco mais de um mês após o estupro, Paula foi invadida por um desespero assim que recebeu o resultado “positivo” no teste de gravidez. “Parabéns, mamãe”, disse o médico do Centro de Referência da Família. Em choque, respondeu apenas que “a gravidez não era planejada” e pediu um exame de HIV. Sofreu em silêncio.

Só na terceira consulta médica, a jovem resolveu pedir ajuda. “Eu fui estuprada, não quero ter esse filho.” Mas o médico disse que nada podia ser feito: “Aborto só com ordem judicial”. A negativa não era só do profissional mas também do Hospital Ministro Costa Cavalcanti, onde ele trabalhava.

Paula então reuniu forças e procurou a Delegacia da Mulher, que a encaminhou ao Ministério Público, que, por sua vez, disse que ela deveria procurar o Centro de Referência de Atendimento à Mulher. A peregrinação só terminou no último papel entregue à jovem: uma recomendação para que fosse até a Defensoria Pública.

“Ela procurou diversos órgãos públicos, passou por uma verdadeira violência institucional. Em caso de estupro, não é preciso autorização judicial nem boletim de ocorrência para realizar o aborto, e essa exigência acabou sendo um entrave para que ela exercesse o seu direito”, afirma a defensora Maria Fernanda Ghannage Barbosa.

Depois de uma decisão da Justiça, Paula conseguiu interromper a gestação, que estava na 12ª semana, no início de outubro de 2016. Seu caso, porém, não é uma exceção e retrata bem a violência silenciosa sofrida por muitas mulheres: a ineficiência da rede de aborto legal no Brasil.

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ALGUNS DOS ESTADOS COM MAIS CASOS DE ESTUPROS SÃO OS QUE MENOS GARANTEM DIREITOS ÀS MULHERES

Só no papel
Desde 1940, as brasileiras que foram estupradas podem realizar um aborto de maneira legal — em média, cerca de 7% dos casos de estupro resultam em gravidez, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na prática, porém, os 77 anos que se passaram desde a promulgação do Código Penal parecem ter sido insuficientes para que esse direito virasse realidade.

E o pior: cruzando os dados de estupros registrados pela polícia com os de abortos realizados pelo SUS, é possível perceber que alguns dos estados que apresentam mais casos de violência sexual são os que menos garantem o direito à interrupção legal da gravidez.

O debate sobre o tema voltou à tona nos últimos meses com um projeto de lei do Distrito Federal que pretendia tornar uma prática a exibição de imagens de fetos, mês a mês, para mulheres que tivessem engravidado em estupro e desejassem abortar. No início de junho, a proposta, da deputada Celina Leão (PPS), foi aprovada na Câmara Legislativa. No mês seguinte, porém, foi vetada pelo governador Rodrigo Rollemberg (PSB), que a considerou “uma barbárie, algo macabro para a mulher que já foi vítima de um crime”.

Enquanto estimativas apontam que cerca de 800 mil abortos clandestinos são feitos anualmente no país, apenas 1.654 interrupções legais foram realizadas no ano passado, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e confirmados pelo Ministério da Saúde.

Dos procedimentos realizados dentro da lei, de acordo com estudo dos pesquisadores Alberto Madeiro e Debora Diniz, 94% são de mulheres que sofreram estupro, 4% em caso de anencefalia fetal (malformação do cérebro incompatível com a vida ou ausência de cérebro no feto), 1% quando há outras malformações graves (com alvará judicial) e 1% porque há risco de morte para a mulher.

Ao cruzar os dados de estupros e de abortos legais, encontramos um mapa distorcido: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais realizaram mais da metade dos abortos legais no ano passado, enquanto Amapá e Roraima não fizeram nenhum nos últimos dois anos. Em nota, os estados argumentam que realizaram seis e sete procedimentos, respectivamente, no ano passado.

Nesses dois estados, o descaso institucional soma-se à grave proporção de casos de violência sexual: em 2015, Roraima registrou 35,6 estupros a cada 100 mil habitantes, o oitavo pior número no país, e o Amapá ficou em sexto lugar, com 37,3 casos a cada 100 mil habitantes. Em 2014, os registros foram ainda piores: Roraima era o segundo com ocorrência de mais episódios e o Amapá, o quarto.

Direito violado
“É claramente a violação de direitos básicos de saúde e também de proteção à vida das mulheres. Essas mulheres foram vítimas de um crime brutal e deveriam receber do Estado toda a oferta de cuidados e acolhimento. Que elas tenham o serviço negado em uma situação tão delicada de sofrimento e desamparo deve nos gerar horror”, diz Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da ONG Anis — Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

Mas Amapá e Roraima não estão sozinhos. Outros três estados estão no topo das duas listas, ou seja, têm altos índices de estupro e baixos registros de aborto legal: Rondônia, Mato Grosso e Acre — este último assumiu o primeiro lugar em número de registros de violência sexual em 2014 e 2015. “O que percebemos no estado é uma religiosidade extrema, em que não se respeita o direito da mulher ao aborto”, afirma a defensora pública Rosana Leite Antunes de Barros, que atua em Mato Grosso.

Se o problema fica mais evidente nos cinco estados citados, ele só realça a má distribuição dos serviços de aborto legal no país, concentrados no Sudeste e em parte do Nordeste e do Sul, e quase inexistentes na região Norte.

Outro problema estrutural é a própria falta de informação sobre os procedimentos em alguns locais. No sistema de dados do SUS, o Piauí chama a atenção como o estado que proporcionalmente mais faz abortos legais no Brasil — em 2016, 285. Ao ser questionada pela reportagem sobre o número alto, porém, a Secretaria de Saúde disse que os dados estão incorretos, pois houve erro de registro. A pasta informou que está fazendo um levantamento para identificar a origem do erro, mas até a conclusão desta edição, não informou o número correto.

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DE QUEM DEVE SER A DECISÃO DO ABORTO? 

Estado laico?
Em 2016, o estado de Goiás foi denunciado pela ONG Artemis às autoridades e também a conselhos de classe por ter negado o acesso ao aborto a uma mulher que foi estuprada. Segundo a denúncia, a vítima foi mal orientada e desacreditada na polícia e no Hospital Materno Infantil em Goiânia. A instituição argumenta que os profissionais notaram incompatibilidade da idade gestacional com a primeira data do estupro informada pela vítima.

A jovem só recebeu o atendimento adequado no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, depois de entrar em contato com a ONG pela internet. É comum ver mulheres como a moça de Goiânia chegando e saindo de mala do ambulatório de atendimento a vítimas de violência sexual. “Essas mulheres costumam recorrer a várias instituições em suas cidades, até que recebem o último ‘não’ e decidem pegar um ônibus ou um avião e vir para São Paulo”, conta o médico Jefferson Drezett, coordenador do ambulatório.

Em 2016, dos 315 abortos realizados no hospital, 6,4% foram de mulheres de outros estados e 48% de outros municípios paulistas. “Uma característica das mulheres que chegam de outros estados é que o tempo de gravidez é maior, porque elas atravessam uma via crucis até conseguir atendimento”, diz o médico. Em alguns casos, a demora inviabiliza a interrupção, já que só pode ser realizada até a 22ª semana de gestação (veja as condições da lei no quadro ao lado).

Uma das barreiras para o atendimento é a chamada objeção de consciência, quando um profissional diz que o procedimento fere suas convicções morais ou religiosas. “Todos os serviços de aborto legal precisam ter um gestor vigiando e batalhando para que avance o atendimento. Se não tiver cuidado, a paciente entra e não é atendida porque o pessoal ‘da cozinha’ disse que é a favor da vida e não quer compactuar com o aborto. O maqueiro, a técnica de enfermagem, todo mundo começa a ter objeção de consciência. É uma luta constante”, diz Olímpio Barbosa de Moraes Filho, gestor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, da Universidade de Pernambuco.

A portaria que normatiza o atendimento às vítimas, no entanto, define que o médico só pode se recusar se outro estiver disponível. “O problema não é o médico manifestar objeção de consciência, ele tem esse direito, o que não pode é o estado deixar de oferecer o serviço por conta disso”, diz Rosângela Talib, coordenadora das Católicas pelo Direito de Decidir, grupo que defende a descriminalização do aborto.

Mesmo proibida, a maior recusa no atendimento de casos de aborto legal não vem de profissionais, mas de hospitais administrados por grupos religiosos que recebem recursos do SUS. “O Estado deveria controlar e obrigar essas instituições a prestar o serviço que é um direito das mulheres, mas a gente está de mãos atadas”, afirma Talib.

Segundo o Ministério da Saúde, a fiscalização e a gestão dos serviços é dever das secretarias estaduais e municipais. “Quando determinado município não tiver o serviço disponível, a paciente será encaminhada ao município mais próximo que tenha os serviços disponíveis”, disse a pasta em nota à reportagem.

Além do aborto, hospitais ligados a igrejas costumam negar a contracepção de emergência às vítimas. “Não existe lei obrigando os hospitais a atender pessoas atropeladas, mas foi necessário publicar uma lei para que eles atendessem mulheres que sofreram um estupro”, diz o médico Jefferson Drezett. Na prática, porém, pouca coisa mudou desde a publicação da Lei nº 12.845, em agosto de 2013. “Achávamos que ia cair o número de atendimentos de violência sexual no Pérola Byington depois da lei, já que todos os hospitais podem realizar os procedimentos necessários, mas não foi o que aconteceu.”

Por onde começar?
O primeiro obstáculo encontrado pelas mulheres vítimas de um estupro é descobrir onde estão os serviços de aborto legal no Brasil. Isso porque o Ministério da Saúde não divulga uma lista com os endereços oficiais em seu site. No ano passado, o Ministério Público Federal em São Paulo instaurou inquérito civil para investigar a falta de informações de acesso ao serviço.

Questionado pela reportagem, o ministério disse que “todos os estabelecimentos de saúde do SUS, com serviço de obstetrícia, podem realizar aborto nos casos previstos em lei”. A pasta também informou que oferece cursos para capacitar profissionais de segurança pública e da saúde para o atendimento humanizado. “Até hoje, 64 unidades e 468 profissionais foram qualificados.”

Na prática, no entanto, não é assim que funciona. Uma pesquisa realizada entre 2013 e 2015 por Debora Diniz mostrou que dos 68 serviços de aborto legal cadastrados no SUS, só 37 de fato prestavam o atendimento. Além disso, 14% exigiam boletim de ocorrência, 8% pediam laudo pericial e 8% queriam alvará judicial para fazer o aborto.

“Embora esses documentos possam ser desejáveis em algumas circunstâncias, a realização do abortamento não está condicionada à apresentação dos mesmos. Não há sustentação legal para que os serviços de saúde neguem o procedimento caso a mulher não possa apresentá-los”, diz a norma técnica do ministério (veja na lista ao lado os papéis que não podem ser exigidos). Na nota enviada à reportagem, o ministério reafirmou que não é necessário apresentar o registro policial.

Pesquisas estimam que só 10% dos estupros são comunicados à polícia. O Projeto de Lei nº 5.069/2013, de autoria de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ex-presidente da Câmara, no entanto, pretende tornar o boletim de ocorrência obrigatório para o aborto. O texto passou em 2015 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e está sujeito à aprovação no plenário.

Para Diniz, a exigência de provas documentais do estupro é, em parte, reflexo da criminalização do aborto no Brasil. “A prática de suspeição da história de violência sofrida pelas mulheres é comum. A ambiguidade que o aborto legal provoca por ser exceção à regra da criminalização gera essas distorções. Os profissionais assumem postura policial em vez de ouvir, acolher e cuidar de uma mulher em sofrimento, por isso a intromissão indevida de um requisito investigativo no que deveria ser apenas cuidado em saúde.”

Cultura do estupro
Além das barreiras documentais, muitas mulheres são submetidas aos critérios morais, que não são oficiais nem claros, dos profissionais da saúde. “Existem diferentes níveis de objeção de consciência. Se a menina tinha 15 anos, era virgem, saiu da missa e foi violentada, a possibilidade de ela conseguir realizar o aborto é grande. Mas se for uma menina de rua, usuária de drogas, que tem tatuagens e foi estuprada, então a objeção de consciência é maior”, diz Moraes Filho, da Universidade de Pernambuco.

“Já atendi o caso de uma mulher que veio da Paraíba, cumpria todos os critérios para o abortamento legal, mas os médicos haviam se recusado a atendê-la”, conta o médico. O motivo era que a jovem havia sido estuprada ao sair de uma praia de nudismo perto de João Pessoa. “Não está na lei que o aborto é permitido em caso de estupro com exceção da mulher que bebeu e que esteja na Praia de Tambaba. Não existe isso, a lei é igual para todas.”

O problema é que muitas equipes de saúde julgam o comportamento da mulher em vez de analisar só os elementos que garantem o direito à interrupção da gestação. “As mulheres são submetidas a uma intensa interpelação para que possam ser constituídas como as vítimas ideais. Um dos profissionais de serviço que pesquisamos ironizou o que acontece no atendimento: ‘A mulher precisa chegar com uma história convincente, que caiba dentro do preconceito das pessoas’”, conta Diniz.

Tal juízo reforça o que uma pesquisa do Instituto Datafolha apontou no ano passado: 37% dos brasileiros acreditam que “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”. Segundo esse raciocínio, o estupro só ocorre para as que “merecem” e a gravidez, como consequência, é uma forma de punição ao comportamento da mulher que não segue a conduta esperada.

“Um hospital não pode se negar a cumprir uma política pública. Não se trata de ato de piedade, de gentileza com essas mulheres, é um dever do serviço de saúde realizar esse tipo de atendimento. Não há como justificar o descumprimento de uma lei que tem 77 anos”, destaca Jefferson Drezett.

O que dizem os estados
A secretaria de saúde de Rondônia informou que, no âmbito estadual, as interrupções de gestação são realizadas pelo Hospital de Base Ary Pinheiro. Apesar de contrariar a norma do Ministério da Saúde, a pasta disse que tanto o Ary Pinheiro quanto outros hospitais municipais somente realizam aborto mediante decisão judicial.

O Governo do Amapá disse que o Hospital da Mulher Mãe Luzia é referência no estado e contestou os dados registrados no SUS. Segundo a Secretaria de Saúde, em 2016 o hospital realizou seis vezes o procedimento em mulheres que foram violentadas. O Ministério da Saúde, por sua vez, afirma que os dados oficiais são os registrados no seu sistema.

A Secretaria de Roraima afirmou que o Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazaré está apto a realizar abortos legais e que todas as unidades de saúde do estado estão abertas a vítimas de violência sexual. “Por um problema técnico, os dados da unidade não constam no DataSUS, no entanto, em 2016 houve 163 atendimentos de vítimas de violência e sete abortos legais; já no ano anterior, foram 113 atendimentos e três abortos legais”, disse em nota enviada à GALILEU.

O Governo de Mato Grosso respondeu que o Hospital Universitário Júlio Müller é referência para a interrupção de gravidez nos casos previstos em lei, mas não explicou o baixo número de abortos legais realizados no estado.

Em nota, o Governo do Acre disse que dois hospitais estão aptos a realizar interrupções: a Maternidade e Clínica de Mulheres Bárbara Heliodora e o Hospital Santa Juliana, ambos em Rio Branco. Para o estado, o baixo número de abortos legais se deve a questões culturais, sociais e à baixa procura do atendimento de saúde. “As vítimas de violência, mesmo com as ações educativas desenvolvidas pelo governo do estado, ainda procuram atendimento fora da rede oficial de saúde, fazendo a opção por profissionais, medicamentos naturais e/ou industrializados e procedimentos clandestinos.”

Por Marcelle Souza

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