(Revista Fórum, 06/02/2015) A “epidemia de cesáreas” que acomete o Brasil deixa claro que a mulher não tem sido protagonista de seu parto, e que o nascimento é encarado por aqui como um evento médico, e não fisiológico e natural. Na contramão, cresce o número de gestantes que aderem ao parto humanizado como forma de buscar uma experiência menos fria e mecânica
“Fiquei mais de 20 horas em trabalho de parto e cheguei a oito centímetros de dilatação. Teve [exame de] toque de hora em hora, tomei soro, não pude comer, beber água, me movimentar. Até que o meu médico chegou, o que fez meu pré-natal, e falou que não iria mais esperar, que iria fazer a cesárea. Eu protestei, disse que queria um parto normal e iria até o fim, e ele falou que era ele quem decidia, que eu não tinha direito de escolha – ‘não vou te deixar morrer por causa dessa irresponsabilidade de parto normal’, ele disse. Falou ainda que, se não fizesse a cesárea, ficaria à mercê do plantão. Fiquei com medo, não sabia quem ia entrar, como ia ser. Fui chorando para o centro cirúrgico. A cirurgia foi horrível. Não vi o Davi nascer, só senti na hora que puxaram. Aí apaguei. Só conheci meu filho mesmo três horas depois, quando acordei, porque eu fui sedada.”
Este é o relato da funcionária pública Cinthia Pinto de Souza, de 27 anos. Seu primeiro filho, Davi, hoje com dois anos, nasceu em um hospital privado da cidade de Ipatinga, em Minas Gerais, por meio de uma cesárea indesejada. Apesar de ter dito a seu médico, durante todo o processo pré-natal, que queria um parto normal, acabou “caindo em uma desnecessária”, como ela mesmo diz. E contra a sua vontade.
Casos como o de Cinthia há muito tempo deixaram de ser exceção para se tornar regra no Brasil (conheça outros aqui). Segundo a pesquisa “Nascer no Brasil”, coordenada pela Fiocruz e lançada em maio de 2014, cerca de 52% dos nascimentos ocorrem por cesáreas no país. Na rede privada de saúde, o índice chega a 88%. Os números estão muito acima das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que preconiza que apenas 15% dos partos sejam realizados por meio de procedimentos cirúrgicos.
O mesmo estudo revela que 28% das mulheres entrevistadas desejavam uma cesariana já no início da gravidez. Na contramão, as 70% restantes preferiam o parto normal, mas poucas de fato alcançaram seu objetivo: em apenas 15% dos casos de primeira gestação na rede privada o nascimento do bebê transcorreu sem intervenções cirúrgicas.
As estatísticas escancaram a existência de uma “cultura da cesárea” no Brasil, sustentada por diversos fatores. Para o médico obstetra Jorge Kuhn, a questão se inicia pela forma com que o momento do parto é encarado pela sociedade. “O parto é colocado como um evento muito perigoso, cirúrgico e, portanto, médico, quando, na verdade, é um evento fisiológico na vida da mulher. Assim como as funções fisiológicas não precisam, na maioria das vezes, ser acompanhadas por um profissional médico – como, por exemplo, o ato de urinar, de evacuar, de conceber –, o parto também, como evento natural, não necessita de um médico, na grande maioria das vezes”, explica.
A falácia de que a cesárea traria, portanto, mais segurança tanto para a parturiente (mulher que está em trabalho de parto), quanto para o bebê, é disseminada pelos múltiplos atores envolvidos no evento. A mulher, rodeada por seus familiares e conhecidos, acaba aderindo à ideia. Mas, de acordo com Kuhn, há outros dois agentes igualmente responsáveis pela manutenção do que ele chama de “epidemia criminosa”: os hospitais (sobretudo, privados) e os próprios médicos.
“Os hospitais são agentes importantes nessa cultura da cesárea. Primeiro, porque não há nenhum hospital no Brasil, do ponto de vista privado, que conseguiria atender uma demanda adequada de partos normais, que seria por volta de 85% das vezes”, destaca o médico. “Segundo, porque não há grande interesse dos hospitais em promover partos normais, já que têm um período longo para acontecer – um parto de primeiro filho pode durar por volta de 12 horas. Como em nossa sociedade moderna, civilizada e capitalista tempo é dinheiro, não há interesse nenhum em privilegiar partos fisiológicos.”
A obstetriz Ana Cristina Duarte, coordenadora do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (GAMA), lembra que, embora em menor escala, a rede pública de saúde também se utiliza da conveniência que as cesáreas oferecem. “Há, no setor público, a cesariana de ‘limpeza de plantão’ – ‘durante o dia a gente espera, deu meia-noite a gente opera’. Porque aí a equipe seguinte assume o plantão e o centro obstétrico está vazio para receber as mulheres de novo”, argumenta.
Para os médicos, a cirurgia é menos trabalhosa e lhes possibilita planejar o atendimento aos pacientes. “A cesariana é, de fato, mais rápida. No setor privado, organiza o serviço e a agenda do médico, pois é marcada com antecedência [a chamada cesárea eletiva, planejada antes da gestante entrar em trabalho de parto] – é o máximo possível da organização, discrimina-se até quantas bolsas de sangue serão usadas”, salienta Duarte.
Há, ainda, outro elemento apontado como determinante para que as taxas de partos cirúrgicos sejam tão exageradas no Brasil. “Hoje, as grandes faculdade de Medicina, as grandes residências médicas formam o médico mais como um cirurgião do que como um parteiro”, assinala Kuhn, que é também professor da Escola Paulista de Medicina. “Sou professor universitário e percebo que, quando o médico se especializa em ginecologia e obstetrícia, sai da faculdade um excelente cirurgião, porque fez muitas operações cesarianas, resolveu muitos casos complexos, mas não viu tantos partos assim. E cada parto é diferente do outro, já a operação cesariana segue uma sistematização.”
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Nota da Redação: Matéria disponível na íntegra no site de origem.
Acesse no site de origem: “Eu sei parir e meu filho sabe nascer”: série reúne depoimentos sobre parto (Revista Fórum, 06/02/2015)