(UOL, 08/05/2016) A maioria diz que o sorriso do filho faz tudo valer a pena. Há quem discorde. Ao quebrar o tabu e expor o lado B da maternidade, essas mães ouvem muitos gritos, mas não dos seus rebentos
O desabafo feito só para amigas próximas ganhou força e, quando perceberam, muitas mães estavam falando em coro sobre o lado B da maternidade. Tudo aquilo que a propaganda de fraldas não mostra, que as mulheres ignoram quando sonham em ter filhos, que não aparece no álbum de família. Uma rotina pesada, que faz mães insones alucinarem de cansaço (os relatos incluem naves espaciais), que traz questionamentos sobre o prometido amor incondicional aos filhos, que as põem sentadas em definitivo no banco dos réus, que causa tanta dor nos seios a ponto de desejarem o secamento do leite. É tabu. Mas precisamos falar sobre essas mães e, mais importante, ouvir o que elas têm a dizer.
A discussão pulou o cercadinho com ajuda do movimento feminista, em que mulheres questionam mais seus deveres e brigam mais pelos direitos. Se algo não está legal, elas querem – e vão – falar sobre isso. Foi assim com a violência doméstica, com as diferenças salariais e com cantadas nas ruas, para citar exemplos recentes. No caso da maternidade, a maioria das mães se mostra realizada. Esse grupo tira tudo de letra e planeja o aumento da prole. Mas também tem gente disposta a escancarar sua insatisfação – um grupo que sempre existiu, mas ganhou força ao se juntar e levantar a voz, principalmente na internet.
Muitas veem a necessidade de se explicar e, para isso, adotam uma espécie de mantra: “detesto ser mãe, mas amo o meu filho”. Com ênfase no “mas”, para dar uma aliviada. Frases desse tipo não tratam de arrependimento ou falta de cuidados. Ainda assim, colocam suas autoras na mira de ataques. Alguns já vêm com o diagnóstico de depressão pós-parto (tema importante, mas que vai além da insatisfação aqui abordada). Tem quem classifique tudo como mimimi, as chame de ingratas, condene a falta de contracepção. E quem, genuinamente, não conceba a ligação entre a maternidade e sentimentos negativos.
A julgar pelo início da discussão, será um parto para essas mulheres se fazerem entender.
O assunto esbarra diretamente na máxima da expectativa x realidade. O que a mãe espera, o (muito) que se espera dela, e o que realmente acontece depois do “toma, que o filho é teu”. Nesse universo de conflitos, muitas podem se pegar com perguntas à la diferentona: “só eu não consigo tomar banho?”, “só eu nunca mais sentei para comer?”, “só eu não vou ao banheiro por falta de tempo?”, “só eu continuo vestindo esta camiseta azeda de leite?”. Esses questionamentos não surgiram agora. Porém, sem a internet nem o aval do feminismo, eram abafados pela máxima das próprias mães: “engole esse choro”.
Mãe de Logan, 2, a escritora Marina Filizola, 35, faz parte do grupo engasgado com o ideal materno – protagonizado por uma figura devota, disposta a sacrificar tudo pela cria. “Maternidade é assim: na hora do nascimento, que o girino cospe fora da barriga, a gente chora de felicidade. Depois desses poucos minutos de gratidão genuína extraordinária e rara, vem a realidade. E a partir desse dia, mães continuarão chorando. Só que daí pra frente, de desespero.” O texto ácido claramente foge do tom usado na porta da escolinha – um lugar sagrado, segundo a descrição de Marina, “onde a gente desova o moleque e some”.
A autora do recém-lançado “Leite em Pó, Crônicas de um Vício” não mede palavras ao relatar aquilo que define como as pentelhações da maternidade. Diz que esgota, cansa. Reclama que os parceiros nunca ajudam a mulher como deveriam. Ela prefere tomar o ansiolítico Lexotan a encarar uma festinha infantil. Demoniza grupos de WhatsApp criados para debater fraldas e chupetas. E, com a mesma objetividade, Marina declara seu amor pelo filho, aquele que considera o “melhor parceiro da face da Terra”. “O amor é natural, instintivo. Quando ele nasce, nada mais existe.”
Muita gente fica confusa com essas supostas contradições. Mas a recente onda de desabafos traz justamente os muitos tons da maternidade – não só o cor-de-rosa e o azul dos bebês.
Mesmo quando feita de maneira mais sutil, a desconstrução da imagem idealizada da mãe – aquela que abraça a causa e a cria – gera estranhamento. “Desde o século 19, a cultura ocidental atribuiu à mulher a responsabilidade pela criação dos filhos. Ser mãe foi e ainda é entendido por muitos como constitutivo da natureza feminina: o instinto materno levaria a ‘naturalmente’ amar e cuidar”, explica a psicóloga e psicanalista Anna Mehoudar, autora do livro “Da Gravidez aos Cuidados com o Bebê” e diretora do Gamp (Grupo de Apoio à Maternidade e Paternidade).
A especialista considera legítima essa onda de manifestações, se levado em conta que a maternidade não traz 100% de felicidade para 100% das mulheres em 100% do tempo. O fato de assumirem isso não necessariamente fará delas mães piores ou menos amorosas. Assim como uma mulher totalmente dedicada aos filhos, daquelas com pulseirinha VIP para padecer no paraíso, pode não ser uma boa mãe. Como sabê-lo?
A ideia de haver um “jeito certo” para a criação é o que mais incomoda a designer Thaiz Leão, 26, mãe de Vicente, 2. “Tenho uma relação com meu filho e outra com aqueles que me enxergam no papel de mãe. Eu e ele estamos de boa, está tudo bem. O problema são todas as cobranças e a vontade de quererem me colocar em meu lugar. Qual é ele? Tenho que ser bela, recatada e do lar?”, ironiza ela, que usa tirinhas bem-humoradas para expor suas angústias maternas na página Mãe Solo. Dizem que no coração de mãe sempre cabe mais um – e o “um”, aqui, não se refere a palpite ou conselho.
Nesse sentido da intromissão, define Thaiz, “ser mãe é uma bosta”: “Todo mundo tem um jeito certo de cuidar, uma fórmula mágica que nunca é igual à sua. É como se você fosse um advogado e precisasse sempre defender uma causa”, compara ela, que disse já ter sido criticada (“você está amassando a criança!”) por uma desconhecida ao carregar o filho em um sling, aquele tecido amarrado ao corpo. Tudo matéria-prima para suas tirinhas. Numa delas, resume: “Gerar é lindo. Parir é intenso. Criar é treta”.
A decepção vem quando se descobre que nem toda mulher, uma mãe em potencial, está pronta e disposta a encarar os desafios e funções deste papel. Papel que surpreende até as declaradamente interessadas em protagonizá-lo, como a atriz Deborah Secco, 36. “Ninguém me avisou que a criança não dá amor no primeiro mês! […] É uma dedicação absurda, o bebê demanda de três em três horas cronometradas. Aí você sente que dá muito e não recebe nada em troca. É frustrante”, declarou recentemente a atriz e mãe de Maria Flor para a revista “Glamour”.
Pesquisadora sobre a história dos direitos das mulheres e doutoranda em direito na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Cynthia Semíramis defende uma discussão aberta sobre o assunto, na tentativa de evitar experiências negativas já conhecidas ou ao menos minimizá-las. As feministas da década de 60, por exemplo, se sentiram enganadas com o ideal da vida doméstica que lhes foi vendido no pós-guerra. Enquanto os homens estavam no front, elas tiveram muito incentivo para trabalhar fora (como aquele cartaz da frase “we can do it”). Depois da guerra, foram “convidadas” a voltar para casa e se realizar com a maternidade.
“A felicidade [doméstica] prometida não se cumpriu. A dedicação à família gerou problemas para as próprias mulheres. Como não trabalhavam, em caso de separação ficavam em situação financeira difícil. Para muitas, realizar-se por meio dos filhos se revelou uma experiência frustrante, e as atividades domésticas se revelaram desmotivadoras.” Frustração parecida pode acometer aquelas que ainda compram a ideia romântica da maternidade – com o agravante de essa ser uma situação irreversível. “Depois do nascimento não tem como voltar atrás, devolver ou nada do tipo. Mesmo entregar o recém-nascido para adoção é algo bastante criticado”, completa Cynthia.
Expor a insatisfação abre brecha para ataques. Aconteceu com a mãe de primeira viagem Juliana Reis, 25. Em fevereiro, ela se recusou a participar de um desafio no Facebook que propunha a postagem de fotos sobre o lado bom da maternidade. Foi contra o fluxo e ainda fez outra proposta que as mães postassem seu desconforto, medo e piores experiências, “para que mais mulheres soubessem da realidade”. Pronto. Estava montada a arena onde apoiadores e críticos superaram os 2.700 comentários, 22 mil compartilhamentos e 119 mil reações (curtidas e afins). Os números seriam ainda maiores, caso sua página não tivesse sido tirada do ar durante 12 horas, na esteira da polêmica.
Para falar sobre essa realidade doméstica, muita gente se esquiva das pedradas em grupos “fechados” – aqueles restritos no WhatsApp, no Facebook, blogs ou páginas como a Mãe Solo e a Tudo Eu: Confissões de Uma Mãe Sincera. Sempre há quem discorde da maioria, claro, mas em geral as seguidoras se identificam com os posts, compartilham suas próprias experiências e marcam conhecidos para que eles vejam o conteúdo. O grito está mais forte, sim. Mas ainda é composto por muitas vozes anônimas: uma coisa é a insatisfação existir, outra é ela ser aceita.
Foi o que Juliana descobriu na prática, ao fazer o desabafo em sua página pessoal. “Não tinha noção que repercutiria dessa forma. Decidi escrever porque, durante o desafio, vi postagens positivas de pessoas que se desesperavam com a maternidade. Pensei: isso é a maior mentira”, lembra a mãe de Vicente, hoje com quatro meses. Ela ainda não sabe por que seu post polemizou tanto, de uma forma que considera assustadora. Apesar disso, não se arrepende. “Se interpretaram errado, não é problema meu. As pessoas precisam entender que é possível reclamar, sim, e não foi por isso que deixei de cuidar bem do meu filho.” Hoje, diz receber muito mais mensagens de apoio e desabafo do que críticas.
No texto em que dizia “estar detestando ser mãe”, Juliana fez a ressalva quase obrigatória dos desabafos: “mas amo meu filho”. A doutora israelense em sociologia Orna Dornath explica por que esse “mas” ainda se faz tão necessário: “O sofrimento materno pode até ser consentido, desde que no final a experiência seja considerada válida. A sociedade não aceita a ideia de uma mulher renegar por completo aquele que seria o maior propósito de sua vida”. Ela considera haver abertura para falar sobre as dificuldades em criar um filho, mas só quando alguns limites são obedecidos. Se ultrapassados – como uma queixa desprovida de manifestação de amor -, é comum taxarem a mulher de louca e até perigosa.
“É extremamente conveniente para a sociedade que mães e filhos lidem com suas insatisfações de forma privada, mas surge a necessidade urgente de um alerta coletivo”, defende Orna, autora de um estudo sobre o arrependimento de ser mãe. Esse alerta pode ser representado por várias ações, como uma nova divisão de trabalho entre mães e pais (a criação ficaria assim menos restrita à relação entre mãe e filho, como hoje é comum). Também é preciso mudar a percepção social da mãe, para que não seja marginalizada (dificuldade em conseguir emprego) nem “canonizada” (percepção que a impede de atender as suas próprias necessidades).
Por fim, defende que parem de cobrar filhos, a todo custo, de mulheres que não querem ou não podem tê-los. “O fato de as mulheres terem os mesmos órgãos reprodutivos não significa que têm os mesmos sonhos, anseios, necessidades e fantasias. Algumas querem e podem ser mães. Outras, não. Deixe que elas tomem esta decisão. Uma decisão que, como falam na tentativa de as convencerem a ser mães, pode realmente mudar suas vidas para sempre.”
Na outra ponta desse movimento há as mães blogueiras – em geral, mulheres que aparentemente curtem cada momento dos filhos e também a maternidade. Esse é o perfil da jornalista Francielli Rezende, 29, criadora do Miss Mãe e defensora de desabafos – desde que venham acompanhados de respostas. “Não adianta passar o dia falando mal das tarefas maternais e não deixar a rotina mais leve.A mãe não precisa se culpar por não ser perfeita, mas sim colocar humor em tudo isso”, sugere a mãe de Henrique, de um ano e oito meses. “Sempre quando falo sobre problemas, jogo a saída que encontrei para aquela situação, explico a solução que achei”, completa.
Seja com as dicas das mães blogueiras, as tirinhas de Thaiz, os posts de Juliana, os textos de Marina e muitas outras alternativas aqui não listadas, cada mãe busca a melhor maneira para lidar com os desafios que nascem junto com seus filhos. E falar claramente sobre os problemas está entre essas opções. “A grande vantagem dessa exposição é mostrar que maternidade e cuidado são experiências plurais, que se modificam de acordo com as pessoas envolvidas, estilos de vida, interesses”, resume a pesquisadora Cynthia Semíramis.
Diante de tantas possibilidades, fica realmente difícil avaliar o que é ser uma boa mãe. Na dúvida, a melhor alternativa pode ser justamente esta: não julgar. “Eu achava que todas sentiam o mesmo que eu e apenas não queriam falar. Mas para algumas é realmente tranquilo, entendi isso ao conversar com outras mulheres. O importante é entender a dor do outro. Não precisa nem ajudar: só de não criticar já está valendo”, avalia Juliana. O recado está dado. Para aqueles que se negam a entender, tem sempre o cantinho do pensamento, onde se pode refletir melhor.
Reportagem: Juliana Carpanez. Direção de Arte: Mariana Romani. Fotografia: Júlio César Guimarães e Lucas Lima.
Esta reportagem também contou com apoio de: Adelle Araújo, professora de bordado e criadora do Miss Caffeine (contribuiu na criação das artes deste TAB); 7irisfilmes, filmagem; Editora Planeta (“Leite em Pó, Crônicas de um Vício”) e Editora Summus (“Da Gravidez aos Cuidados com o Bebê”).
Acesse no site de origem: FILHO DA MÃE: Por que incomoda tanto quando mães questionam o paraíso onde padecem? (UOL, 08/05/2016)