(Correio Braziliense, 13/12/2015) O significado da menstruação passa por um momento de intenso debate. De incômodo mensal a ato de empoderamento feminino, o sangramento não pode mais ser ignorado
Uma mulher menstrua cerca de 400 vezes durante a vida. A cada mês, os hormônios estrogênio e progesterona sofrem diminuição brusca em sua produção nas células ovarianas. A quantidade reduzida do primeiro hormônio torna a mulher mais sensível, tanto fisicamente quando psicologicamente. Como consequência da baixa na progesterona, a membrana mucosa que reveste o útero, o endométrio, descama. Entre dois e oito dias, o corpo feminino elimina diariamente cerca de 100ml de sangue. Depois de um período de prontidão, à espera de uma possível gravidez, o útero se desmobiliza. É um ciclo, que se repete entre 21 e 35 dias.
Mas mesmo sendo um processo completamente natural, falamos pouco sobre o assunto. Menstrua-se e ponto — não é nada mais do que um incômodo mensal. Comum na vida de basicamente todas as mulheres do mundo, sejam elas europeias, africanas, asiáticas ou americanas, a menstruação é escondida. O sangue se tornou algo relacionado à dor, ao sofrimento, aos machucados.
O tempo que se passa sangrando é um momento inseguro — no período, é preciso atenção redobrada para se ter certeza de que nada está manchado, as cólicas castigam, as emoções estão latentes, os seios doem, a pele fica mais oleosa. Mesmo com tudo isso, a rotina de trabalho, de estudos, de família continua a mesma.
Ultimamente, voltamos a falar sobre “aqueles dias”. O coletor menstrual, o conhecido copinho, é discutido em quase todas as conversas entre amigas. Fala-se de cólicas, de TPM. Pedir um absorvente emprestado em público não é mais uma grande vergonha. A menstruação deixa de ser só um incômodo, e seu atraso, um indicador da gravidez. Há quem abrace a menstruação como o símbolo máximo da feminilidade. Mas também há quem considere este um período inútil e escolha não menstruar.
O feminino redescoberto
Nas sociedades antigas, matriarcais, o período menstrual era encarado como sagrado. As mulheres que estavam nos “dias da Lua” eram separadas dos demais e iam para o meio da floresta, para as tendas da Lua, onde ficavam sentadas na terra, devolvendo o sangue e meditando. Entre elas, discutiam, conversavam, contavam histórias, cantavam. Na volta, eram recebidas como sacerdotisas, gurus. Com a clareza necessária para aconselhar e tomar decisões.
“As mulheres anciãs compreendiam que esse período da mulher era um período de maior poder espiritual. Um momento de muito poder, de introspecção. Quando temos a intuição mais elevada, é a oportunidade de abrir o terceiro olho. Tem uma coisa mística. Elas voltavam com visões, conselhos para a comunidade, sabedoria”, explica a gestora ambiental Juliana Agudela. Alguns ritos sagrados eram feitos com sangue menstrual. Em outras culturas, recolhia-se o sangue para fertilizar a terra e garantir boas colheitas.
Ao longo do tempo, a sociedade foi se tornando patriarcal e a menstruação, um período no qual se sangra sem estar morrendo, passou a ser encarada como algo estranho, nojento, que deveria ser escondido. “Por poderem engravidar, gerar vida, as mulheres eram seres superiores aos homens. Com a mudança social, as mulheres foram sendo colocadas no campo privado, foram perdendo espaço e começou toda uma deturpação dos valores que eram sagrados, naturais. Foram tirando o poder da mulher”, explica a economista e pesquisadora de gênero Tânia Fontenele, coordenadora do Instituto de Pesquisa Aplicada da Mulher.
“A sociedade patriarcal foi quebrando esse prazer de ser mulher. O prazer de menstruar, de ter orgasmos. Considero que a caça às bruxas foi o momento definitivo para sedimentar essa visão. Foi um massacre histórico que nos deixou essa vergonha por ser mulher”, conta a estudante Ariadne Hamamoto, 23 anos. Ariadne estuda o assunto e a menstruação é o tema principal de seu trabalho de conclusão de curso.
Hoje, várias culturas consideram a menstruação como algo sujo e vergonhoso. Na Índia, por exemplo, as mulheres compram absorventes embrulhados em embalagens de papelão, para “disfarçar” o conteúdo. Durante o ciclo, deixam de sair de casa, e a falta de água muitas vezes dificulta que as toalhinhas sejam corretamente higienizadas.
Menstruadas são proibidas de entrar em mesquitas, a depender do ramo do islamismo. Em algumas sociedades camponesas europeias, tais mulheres não podiam tocar em árvores ou vacas para não “secá-las”. Uma crença viva ainda em certos vilarejos não permite que elas amassem as uvas para o vinho, sob o pretexto de podem azedá-lo. E mais: não podem cozinhar, não devem tomar banho, não podem fazer sexo… Ficam completamente reféns de uma condição natural e própria do feminino.
“É uma bobagem ter vergonha, a menstruação faz parte da vida. É como respirar. Vou me esconder por causa do valor dos outros? Temos peitos, menstruamos, temos TPM, e tudo isso faz parte dos meus ciclos. Não podemos negligenciar o próprio corpo”, protesta Tânia Fontenele. “Acho que são ondas de feminismo, e eu considero que estamos chegando em um momento mais maduro. Estamos desconstruindo, resgatando um conhecimento. Acho que é um movimento das mulheres de buscar uma reconciliação com o feminino”, afirma Ariadne.
Juliana Contaifer
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