Janaína Aparecida Quirino, 36 anos, moradora em situação de rua em Mococa (SP), 5 filhos, foi submetida a uma laqueadura sem seu consentimento. Janaína, usuária de crack, encontra-se hoje no cárcere após ser presa por porte ilegal de drogas. O caso, revelado no sábado 9 pelo jurista e professor de direito constitucional da FGV-SP, Oscar Vilhena Vieira, em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, reacende a discussão sobre a interferência do Estado nos direitos das mulheres sobre seus corpos.
(Geledés, 17/06/2018 – acesse no site de origem)
Janaína, em sua condição de vulnerabilidade, não teve escolha diante da ação do promotor Frederico Liserre Barruffini que selou seu destino. A partir da ação, o juiz Djalma Moreira Gomes Júnior determinou ao município de Mococa que realizasse a esterilização de Janaína durante sua última gravidez, em outubro de 2017. Tanto a conduta do juiz quanto a do promotor estão sob averiguação da Justiça.
As temáticas sobre os direitos sexuais e reprodutivos, assim como o planejamento familiar, ganharam força após a década de 1960, com a propulsão dos movimentos feministas. Durante os anos da ditadura, a esterilização das mulheres era concedida como parte de uma política de controle populacional. A lei do Planejamento Familiar veio em 1996. Para conhecer mais sobre seus direitos e oferta de métodos contraceptivos pelo Estado clique aqui .
Como explica a convidada dessa semana da nossa coluna GELEDÉS NO DEBATE, Paula Sant´Anna Machado e Souza, Defensora Pública e Coordenadora Auxiliar do NUDEM (Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública), “cabe ao Estado garantir que a pessoa tenha a liberdade de opção” sobre os métodos anticoncepcionais.
Geledés – Como vê o caso de esterilização de Janaína Aparecida Quirino?
Paula Sant´Anna Machado de Souza– O caso de pedido de esterilização involuntária de Janaína fere o artigo 12 da Lei 9263/1996 – da Lei Planejamento Familiar – que determina a proibição da realização de procedimentos com a finalidade de exercer controle demográfico. Essa lei prescreve que é dever do Estado promover condições e recursos que assegurem o livre exercício do planejamento familiar. Ou seja, cabe à pessoa escolher se deseja ou não fazer esses procedimentos. Além disso, segundo essa mesma legislação, cabe ao Estado oferecer todos os métodos e técnicas de concepção que não coloquem a vida e a saúde das pessoas em risco, garantindo, portanto, a liberdade de opção. E ainda existe uma recomendação do Comitê sobre a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, ratificada pelo Brasil, que veda expressamente a esterilização sem consentimento.
Geledés – O promotor Frederico Liserre Barruffini, de Mococa (SP), que determinou o destino de Janaína, utilizou-se de uma ação civil pública. Isso é possível nesse caso? E se não for, em que medida a ação fere os direitos básicos dessa pessoa?
Paula Sant´Anna Machado de Souza – Entendo que não houve respaldo legal, constitucional e internacional para o requerimento dessa cirurgia de esterilização. Mais uma vez reforço aqui a ideia de que o Estado não tem o direito de interferir nos órgãos sexuais e reprodutivos das mulheres, bem como em seus planejamentos familiares. Se verificarmos a legislação brasileira, fica claro que ela caminha para esse entendimento.
Geledés –Segundo o Código de Ética Médico não é recomendado pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), pela OMS, a realização de laqueadura no momento da cirurgia cesariana por aumentar a probabilidade de mortalidade materna. Mas isso não parece ocorrer no Brasil. Como impedir pela Justiça casos semelhantes?
Paula Sant´Anna Machado de Souza – A própria lei de Planejamento Familiar, no seu artigo 10, parágrafo 2º, veda a esterilização cirúrgica nas mulheres durante os períodos do parto ou aborto, exceto em caso de comprovada necessidade. Por isso é importante que todas conheçam os seus direitos e, diante de uma possível violação, procurem um (a) advogado (a ) ou a Defensoria Publica.
Geledés – A OAB de Mococa afirma que Janaína estava “ciente do procedimento e consentiu de forma voluntária”. Qual deveria ser o procedimento em casos como o de Janaína?
Paula Sant´Anna Machado de Souza – Apenas Janaína poderia ter ajuizado uma ação para que o município fizesse a cirurgia, caso houvesse recusa do SUS em realizá-la. Além disso, existem inúmeros métodos contraceptivos que não são cirúrgicos, como, por exemplo, o DIU. Não sabemos se esses métodos foram ofertados à Janaina pela rede de saúde pública.
Geledés – Existem casos similares ao de Janaína ainda não revelados?
Paula Sant´Anna Machado de Souza – Na Defensoria já houve atuação em caso de mulheres com deficiência em que também foi determinada a laqueadura coercitiva, porém, após nossa intervenção esses procedimentos não ocorreram.
Geledés –Entre as camadas menos privilegiadas, a esterilização tende a se dar sem que antes a mulher possa ter a oportunidade de planejar e administrar o tamanho de sua prole. De que maneira o Estado deve dar acesso aos métodos contraceptivos lícitos e ao mesmo tempo não interferir no processo decisório dessa mulher?
Paula Sant´Anna Machado de Souza – A Lei de Planejamento Familiar já nos dá essa resposta. Ela define que o planejamento familiar é o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de Constituição, limitação ou aumento de prole pela mulher, homem ou casal. Ou seja, esse planejamento deve ocorrer através de ações preventivas e educativas e com a oferta de métodos e técnicas de concepção e contracepção que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas.
Geledés – De acordo com a Lei de Planejamento Reprodutivo, a esterilização voluntária deve ser uma medida excepcional. Em que casos de excepcionalidade devem ocorrer esterilizações?
Paula Sant´Anna Machado de Souza – Somente nos casos em que a mulher assim desejar, uma vez que apenas ela é capaz de decidir sobre os processos contraceptivos em relação aos seus direitos sexuais e reprodutivos, como determina a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação.
Geledés –É preciso haver um maior debate dentro do magistrado sobre os direitos sexuais e reprodutivos? Em caso afirmativo, de que maneira e com qual objetivo?
Paula Sant´Anna Machado de Souza – Acredito que todas as pessoas envolvidas com o Direito, e não apenas a magistratura, precisam estudar e se capacitar cada vez mais sobre as legislações nacionais e internacionais de proteção dos direitos das mulheres com o intuito de atendê-las de forma mais digna, compreendendo suas autonomias, autodeterminações. O que não pode ocorrer é violação pelo Estado dos corpos das mulheres, o que configura em descumprimento de Direitos Humanos.
Kátia Mello