(O Globo, 10/03/2015) Evento Pequim +20, das Nações Unidas, discute igualdade de gênero e eliminação da discriminação contra mulheres em todo o mundo
O abortamento clandestino constitui a quinta causa da morte materna no país, “situação que configura um problema de saúde pública de significativo impacto”, afirma o próprio governo brasileiro no relatório elaborado para o evento “Pequim + 20”, que acontece na 59ª Comissão sobre o Estatuto da Mulher da Organização das Nações Unidas (ONU). “Ainda que a legalização do aborto seja uma reivindicação histórica do movimento feminista, o tema encontra forte oposição do crescente setor conservador e religioso da sociedade, de grande influência no Poder Legislativo”, diz o documento elaborado pela Secretaria de Política para Mulheres (SMP) e obtido com exclusividade pelo GLOBO.
Saúde da Mulher é um dos 12 temas da plataforma de Pequim, acordo mundial para trabalhar pela igualdade de gênero e para eliminar a discriminação contra mulheres e meninas em todo o mundo. Segundo pesquisa do ano passado do Ministério da Saúde em parceria com organizações de mulheres, o Brasil registra anualmente um milhão de abortos induzidos e uma em cada cinco mulheres já adotou essa prática.
O governo também afirma que há “grande dificuldade” em assegurar o acesso a serviços no campo dos direitos sexuais e direitos reprodutivos e aponta como desafios ainda a ser batidos: “a recorrência da violência obstétrica; a valorização da cesárea (52,34% do total de partos, em 2010) em detrimento do parto natural; a lenta redução da mortalidade materna; e a violência institucional, que impõe barreiras no atendimento de mulheres em situação de aborto legal e em algumas situações de parto”.
Além do aborto, uma grande preocupação do governo brasileiro e da ONU é a mortalidade materna, tema do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Em 2013, 65 mil mulheres morreram no Brasil por complicações ao dar à luz, durante ou após a gestação ou causadas por sua interrupção. De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil tem hoje 62 casos a cada 100 mil nascimentos. A meta estabelecida até o fim deste ano pelo ODM, da ONU, era chegar a uma taxa de 35 mortes por 100 mil nascimentos.
“Com relação à mortalidade materna, resultados preliminares indicam que a redução acentuou-se nos últimos anos. No entanto, mais de 66% dos óbitos maternos ainda resultam de causas diretas relacionadas à gravidez – em grande medida evitáveis”, admite a SPM no relatório enviado à ONU. A alta taxa de cesáreas, o excesso de intervenções desnecessárias, a falta de treinamento de equipes especializadas e a proibição do aborto são alguns dos fatores apontados como barreiras para que o risco diminua mais no país.
A secretária-executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Clair Castilhos, afirma que, mesmo com a diminuição da mortalidade materna, o índice atual ainda é inaceitável.
— O ideal é que seja de 10 mortes a cada 100 mil nascimentos. Nós já atingimos 113. Mas não vamos conseguir melhorar sem enquanto não houver um pré-natal adequado, atendimento de UTI neo-natal, um plano de atenção integral que contemple ações preventivas e curativas, com os três níveis da integralidade que o SUS preconiza: promoção, proteção e recuperação — afirma Clair.
Para ela, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), criada em 2004 após recomendações da ONU, não tem funcionado na prática nos últimos anos.
— Nós nunca conseguimos fazer que um programa de assistência integral à saúde da mulher fosse totalmente implantado e um dos motivos são as questões religiosas poque na saúde integral está embutido a questão do aborto e dos anticonceptivos. Com esse Congresso é impossível discutir aborto, por exemplo, mas nada disso vai impedir que continuemos lutando pela legalização, não vamos nos intimidar com esse (presidente da Câmara) Eduardo Cunha (PMDB). Além disso, estamos alinhados com as propostas de globalização neoliberal que não aceitam políticas de universalização como a do SUS. É preciso fazer um resgate desse sistema — diz a secretária.
CASO ALYNE
A negligência no atendimento de uma mulher jovem negra e pobre se tornou emblemática na luta pela redução da mortalidade maternal. Em 14 de novembro de 2002, Alyne da Silva Pimentel Teixeira, 28 anos, estava no sexto mês de gestação e buscou assistência na rede pública em Belford Roxo (RJ). Alyne era casada e mãe de uma filha de cinco anos. Com náusea e fortes dores abdominais, buscou assistência médica, recebeu analgésicos e foi liberada para voltar a sua casa.
Não tendo melhorado, retornou ao hospital, quando então foi constatada a morte do feto. Após horas de espera, Alyne foi submetida a cirurgia para retirada dos restos da placenta. O quadro se agravou e foi indicada sua transferência para hospital em outro município, mas sua remoção foi feita com grande atraso. No segundo hospital, a jovem ainda ficou aguardando por várias horas no corredor, por falta de leito na emergência, e acabou morrendo no dia 16 de novembro de 2002, em decorrência de hemorragia digestiva resultante do parto do feto morto.
O caso foi apresentado à Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), órgão ligado à ONU, pela mãe de Alyne, Maria de Lourdes da Silva Pimentel. Em 2011, o Cedaw responsabilizou o Estado brasileiro por não cumprir seu papel de prestar o atendimento médico adequado desde o início das complicações na gravidez de Alyne. Para o órgão, a assistência à saúde uterina e ao ciclo reprodutivo é um direito básico da mulher e a falta dessa assistência consiste em discriminação, por tratar-se de questão exclusiva da saúde e da integridade física feminina.
O Cedaw determinou que o Estado brasileiro indenizasse a família de Alyne Teixeira e apresentou recomendações a serem adotadas no serviço público de saúde, para melhorias no atendimento de gestantes.
“O Brasil cumpriu as recomendações do Comitê de oferecer reparações simbólicas e financeiras à mãe da falecida Alyne Pimentel, além de ter adotado medidas de caráter geral, voltadas para a melhoria das condições de acesso à saúde, redução da mortalidade materna evitável e treinamento e capacitação dos profissionais que operam na área da saúde. Essas medidas evidenciam o engajamento do país na garantia e promoção dos direitos das mulheres”, afirma a SPM no relatório enviado à ONU.
A mãe de Alyne foi recebida em cerimônia, no ano passado, pela então ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, a ministra da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, Luiza Bairros, e a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci.
Julianna Granjeia
Acesse o PDF: Governo afirma à ONU que aborto clandestino no país é problema de saúde pública (O Globo, 10/03/2015)