(Folha de S.Paulo, 26/03/2016) As campanhas de combate ao mosquito Aedes aegypti contra a propagação do vírus da zika devem incluir educação sexual e prevenção à gravidez indesejada. Essa é a avaliação da professora argentina Andrea Gamarnik, 51, chefe do laboratório de Virologia Molecular da Fundação Instituto Leloir, em Buenos Aires, e pesquisadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas, órgão ligado ao Ministério de Ciência da Argentina.
“Recomendar às mulheres que não fiquem grávidas é uma mensagem vazia”, afirma Gamarnik. “Se a maioria das vítimas do vírus da zika vive em lugares onde há pobreza e poucos recursos, creio que seja importante investir esforços em educação sexual e em programas para evitar a gravidez indesejada.”
A cientista dedica-se a escrutinar a dengue, concentrando-se na maneira como o vírus infecta as células e se multiplica. Graças aos resultados de sua pesquisa, empresas como a Roché e a Novartis desenvolvem vacinas e antivirais, em fase de testes.
A importância do trabalho de Gamarnik foi reconhecida pelo programa L’Oréal – Unesco Para as Mulheres na Ciência, que premia cientistas do mundo todo.
Neste ano, foram celebradas cinco responsáveis por análises no campo genético e no controle de propagação dos vírus HIV, da gripe aviária e da dengue. Como representante da América do Sul, Gamarnik lembrou que, ainda hoje, há diferença de gênero na profissão, com 80% dos postos de comando ocupados por homens.
Gamarnik falou à Folha sobre o zika, o pior surto de dengue da região e o machismo em sua área de atuação em Paris, onde ocorreu a cerimônia de premiação, na última quinta (24). Confira trechos da entrevista.
Vírus da dengue
Há 15 anos tentamos entender como o vírus da dengue se replica. Estudamos o modo como ele infecta as células, se multiplica e a maneira pela qual ele passa do mosquito para o ser humano.
A primeira descoberta importante que fizemos foi de como o vírus passa de uma molécula de material genético para milhares de vírus. Desvendamos o mecanismo molecular pelo qual ele se multiplica. Essa estrutura se aplica a toda a família dos flavivírus, entre eles, muitos patógenos humanos, como o vírus da zika e a febre amarela.
O vírus da dengue é uma partícula muito sensível. Tem uma só molécula de RNA, protegida por uma membrana. Quando o vírus infecta uma célula, ele incorpora o material genético ali dentro, seja ela a do mosquito ou a de um humano. Depois, ele tem de multiplicar essa matéria para gerar muitos vírus. Nós descobrimos como uma proteína é capaz de reconhecer essa molécula e copiá-la.
Causas do surto
A dengue infecta 390 milhões de pessoas por ano no mundo todo, e hoje vivemos uma das piores epidemias de todos os tempos. Havia dois países da América Latina livres da doença, o Uruguai e o Chile, que agora também têm casos. Isso foi provocado por um somatório de fatores, como as mudanças climáticas, a adaptação do mosquito e a falta de água potável, que leva as pessoas a juntarem água.
A urbanização desorganizada está associada ao aumento da população de Aedes aegypti, bem como a pobreza.
Vacina contra a dengue
As informações que produzimos têm sido usadas para criar antivirais e também vacinas. Temos relacionamento com laboratórios do Brasil, dos EUA, da Europa, e temos desenvolvido ferramentas com empresas de biotecnologia para a busca de antivirais.
Zika X dengue
São dois vírus com características muito parecidas no que diz respeito à biologia e à forma de transmissão.
Mas pode ser que o zika seja transmitido por outras vias que não somente o mosquito, e isso é muito diferente da dengue. Se for confirmado que o zika é transmitido sexualmente, e se for ele também a causa de malformação nos fetos, isso coloca as mulheres numa situação de alta vulnerabilidade.
Transmissão sexual do zika
Na minha opinião, iniciar uma campanha para as mulheres não engravidarem é uma mensagem vazia. Se a maioria das mulheres vítimas do vírus do zika vive em lugares onde há poucos recursos e, às vezes, ficam grávidas sem desejar, dizer que não fiquem é quase uma falta de respeito.
Acredito que os governos deveriam investir esforços em educação sexual, algo fundamental para evitar uma gravidez inesperada.
Prevenção de epidemias
Há muitos vírus que são selváticos, estão entre os mosquitos, nas florestas, e não entre os humanos ainda. Os cientistas deveriam se focar em como os vírus evoluem e como essas viroses funcionam na natureza para serem capazes de preveni-las.
Mulheres na ciência
Ainda hoje, há discriminação contra as mulheres e diferenças de gênero no desenvolvimento dentro da carreira científica. Quando fazia meu PhD, em Buenos Aires, nos anos 1980, escolhi um laboratório para estudar. Soube depois que ele não aceitava estudantes mulheres. Apenas após um ano e meio ele me aceitou.
Em diferentes situações sou a única mulher presente. Esse prêmio nos faz questionar por que há 80% de homens em altos postos na ciência.
Adriana da Silva
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