(Época, 04/02/2016) Vítimas de zika não podem ser forçadas a manter uma gravidez que pode trazer riscos ainda desconhecidos a sua saúde e a de seu futuro filho
O escândalo não deve ser o direito ao aborto em caso de zika, mas a negligência do Estado brasileiro em enfrentar a epidemia. A conversa precisa ganhar contornos justos, e o mais importante deles é reconhecer que as mulheres estão desamparadas pela incapacidade do Estado de eliminar o mosquito. Não podemos nos confundir agora, pois falar em direito ao aborto parece provocar um novo pânico. Direito ao aborto é só uma das formas de proteger as necessidades de saúde das mulheres em uma tragédia epidêmica. E não há nada de eugenia aqui, uma palavra que perturba pelo passado de terror e pelo prenúncio de discriminação injusta.
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Segundo a OMS, “o nível de alarme é extremamente alto” para os riscos de má-formação no feto causada pelo zika. O conjunto de variações etiológicas do feto é descrito como “microcefalia”, mas estamos diante de um novo quadro clínico ainda a ser descrito. Para cuidar dessa metamorfose epidêmica, é preciso um pacote amplo de proteções aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: a) acesso irrestrito aos métodos contraceptivos; b) teste para o zika em rotina de pré-natal; c) possibilidade do aborto legal em caso de testagem positiva ao zika. Para as mulheres infectadas pelo zika que não desejarem o aborto, deve haver pré-natal com cuidados específicos. Repito: sabemos pouco sobre os efeitos do zika em mulheres grávidas.
Não há nada que se assemelhe à eugenia aqui. O Estado não impõe às mulheres o aborto. Ao contrário, há uma grave violação à saúde pela vivência da gravidez em tempo de epidemia: direito ao aborto ou cuidados precoces são duas maneiras de amparar as mulheres grávidas. Um estado democrático de direito reconhecerá essa diversidade de escolhas: as mulheres nem serão forçadas a manter-se grávidas sob riscos ainda desconhecidos a sua saúde e a de seu futuro filho, tampouco serão forçadas a abortar. Um Estado eugênico não reconhece o direito à autonomia da vontade, pois é um regime político totalitário de gestão da vida.
Mas há outra razão para afugentarmos o fantasma da eugenia desta conversa. A epidemia fez crescer o número de crianças com deficiência em regiões pobres do Brasil – por isso, medidas de proteção social que respeitem o novo marco constitucional da pessoa portadora de deficiência devem ser urgentemente adotadas. Não há isso de “geração de sequelados”, como disse o ministro da Saúde. Menos ainda a solução de um salário mínimo para as famílias com crianças afetadas pelo zika: um Estado social forte não se resume à transferência de renda no limite da pobreza. A verdade é que não há incompatibilidade de agendas para o enfrentamento da epidemia: movimentos de mulheres e de pessoas com deficiência devem andar lado a lado. São as mulheres as principais vítimas da epidemia, e são as mulheres as cuidadoras das crianças com deficiência. Cabe a elas a escolha sobre seu projeto de vida e de família, especialmente em um momento dramático como uma epidemia.
* Debora Diniz é doutora em antropologia, professora de Direito da UnB e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética
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