(R7, 10/11/2014) Estar grávida e usar crack é sentir a mesma pedra alimentando duas vidas, dois vícios. A criança se mexe muito no ventre durante a tragada e depois ocorrem sangramentos, convulsões e tremedeira. Quando a vontade de usar mais volta, o bebê fica agitado de novo. Ele cobra mais e também sofre abstinência, tem as mesmas fissuras da mãe. Essas são as sensações descritas pelas gestantes que conversaram com o R7 na Cracolândia, região central de São Paulo.
Katilene Oliveira dos Santos, de 27 anos, está grávida de quatro meses. Ela foi para as ruas aos 11 anos, quando a mãe morreu de Aids e ela e os três irmãos foram morar em abrigo. Conheceu as drogas aos 14 anos e, aos 17, passou a usar crack, consumido até hoje.
Essa é a primeira gravidez de Katilene, que tenta reduzir o uso, mas não conseguiu abandonar o cachimbo para ter uma gestação mais saudável.
— O máximo que eu aguento ficar sem [crack] são três dias. Depois eu não consigo segurar, daí uso umas cinco pedras de uma vez. O bebê mexe sem parar.
O marido também é usuário. Os dois vivem em uma pensão no entorno da Cracolândia e ainda não sabem se vão ficar com a criança. A sogra de Katilene se colocou à disposição para criar o neto ou receber os dois em casa. A jovem ainda não decidiu o que pretende fazer. Só sabe que não quer criar o filho nas ruas de São Paulo.
A gestante Daise Cordeiro de Lima, de 21 anos, assinou um documento passando a guarda dos gêmeos que espera para a avó. Ela não consegue criar os dois filhos que já teve, um de cinco e outro de dois anos, e diz não querer que os bebês que vão nascer usem droga por “tabela”.
A jovem fala que não quer mais engravidar e que já pediu para ser operada. O medo é que seus filhos enfrentem as mesmas situações vividas por ela. Daise conta que matou um homem depois que ele tentou estuprá-la. Hoje, para sustentar o próprio vício e o do marido, ela faz programa no centro.
— Eu não quero mais engravidar, olha a minha vida. O governo devia vir aqui e operar tudo que é mulher. Eu já tive que matar um homem a pauladas em legítima defesa. Imagine um cara relar numa filha minha. Fui estuprada pela primeira vez aos 12 anos na frente da minha mãe.
Depois do abuso, Daise saiu de casa e arrumou o primeiro marido, pai dos dois filhos que ela já tem. O companheiro atual usa crack e ela afirma que consome apenas cocaína, lança perfume e maconha. Nessa rotina, ela não consegue acompanhar o pré-natal.
— Minha família não sabe meu paradeiro. A essa hora podem achar que eu estou até morta. Eu tenho medo de perder os filhos que estão na minha barriga, mas eles ainda são anjos. Pelo menos vão direto para o céu. Eu tenho muito sangramento e convulsão.
Uma pesquisa realizada pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) indica que 20% das pessoas que frequentam as regiões de cracolândias no País são mulheres. O estudo ouviu 32.359 pessoas, sendo 24.977 em domicílios e 7.381 nos próprios locais de consumo de droga. Entre as mulheres, 8,17% têm aids. No momento da entrevista, 10% delas afirmaram estar grávidas. Nem 5% realizam o pré-natal de forma adequada (pelo menos sete consultas antes do parto).
Segundo um dos coordenadores do trabalho, o médico Francisco Inácio Bastos, ele nunca viu uma população feminina tão maltratada e magoada. A busca por um tratamento na gravidez acaba sendo a porta de entrada dessas mulheres no sistema de saúde, por isso o médico defende que os governos deveriam fazer um plano integrado para receber essas mulheres na gestação e já tratar o problema das drogas.
Gravidez limpa
Carolina Regina, de 22 anos, tem tanto medo de não criar o filho que espera — se o Conselho Tutelar retirar a criança dela — que parou com as drogas. O filho que teve aos 18 anos não vive com ela. A primeira gravidez foi acompanhada do uso de drogas e ela lembra o quanto passava mal e como ficou feliz em saber que a criança nasceu saudável.
Ela diz que, da outra vez, a barriga ficou enorme e seu corpo inchou muito. Agora, aos oito meses, a gestação está discreta.
— Eu até perguntei para a médica se estava tudo bem porque minha barriga está tão pequena. Não vejo a hora.
Os pais de Carolina morreram de Aids e ela vive nas ruas desde os nove anos com o irmão, quando passou a usar drogas. Ela diz que agora consegue se manter longe pelo bem do filho. O marido ainda usa pedra, mas tenta comprar coisas para o filho que vai nascer.
O casal trabalha no programa da prefeitura “De braços abertos”. Além de uma vaga em uma pensão, direito a vale comida, eles ganham R$ 105 cada um, às sextas-feiras, para varrer ruas da cidade. Carolina sonha em guardar parte desse dinheiro e, mais para frente, alugar uma casa para viver apenas com o marido e os filhos.
— Eu quero um dia criar meu outro filho também. Hoje, se estou próxima de quem está usando [crack], saio de perto, vou ouvir música, fazer alguma coisa. Estou determinada e não vou me influenciar por mais nada.
A jovem é sorridente, mas convive com a tristeza de saber que o único irmão, de 18 anos, vive na Cracolândia e se entregou ao crack.
— Perdemos os nossos pais tão cedo e fomos pra rua. Eu queria que meu irmão tivesse uma família assim como eu tenho agora. Ele ia entender que a vida pode ter um novo sentido.
De braços abertos
A Prefeitura implementou o programa após um acordo no início do ano com moradores de 147 barracas que ocupavam as ruas Helvetia e Dino Bueno. Atualmente, 513 participantes vivem em sete hotéis no entorno, ganham três refeições diárias, e R$ 15 por dia de trabalho. Uma balanço divulgado em outubro pelo programa indica que o consumo de droga foi reduzido em até 50%, em média, entre os usuários de crack que trabalham.
Do total de beneficiários cadastrados, 307 são homens, 169 são mulheres e 37, crianças. Ainda de acordo com a prefeitura, 23 usuários já trabalham fora do programa e 49 atuam nas frentes de trabalho em órgãos municipais. Outros 260 seguem no serviço de varrição de ruas e 25 participantes estão no projeto Fábrica Verde, um curso de capacitação voltado à área de jardinagem.
Sylvia Albuquerque
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