Gravidez na infância é mais perigosa para meninas negras do que para as brancas e as adultas

31 de julho, 2025 Gênero e Número Por Adriana Amâncio

Com menos acesso ao aborto legal e ao pré-natal, crianças e adolescentes negras de 10 a 14 anos ficam mais vulneráveis à mortalidade materna.

Alice* passou meses “sentindo uma coisa mexendo na barriga.” O pai, que abusava dela, dizia que a levava ao hospital e sempre retornava com a mesma resposta: “Não tem nada errado.” Esse relato foi ouvido pela médica Marcela Sousa, especialista em ginecologia e obstetrícia e responsável pelo serviço de Pré-Natal de Alto Risco da Policlínica de Coari, cidade a 363 km de Manaus.

Ela conheceu a história quando recebeu a menina de 13 anos, com oito meses de gravidez, apresentando sintomas graves de eclâmpsia. A criança foi estuprada pelo próprio pai, sofreu ameaças e, por medo, nunca revelou a gravidez, nem realizou o pré-natal. A ida ao hospital foi inevitável quando a adolescente apresentou convulsões, visão turva, dores abdominais, sinais mais severos da doença.

A médica relembra que ela chegou em estado gravíssimo, e a equipe agiu rápido, mas o pior aconteceu. Após 36 horas do parto, Alice morreu. “A paciente teve ruptura da cápsula hepática, insuficiência renal e acidente vascular cerebral hemorrágico, desfechos trágicos da eclâmpsia”, recorda.

Meninas negras, como Alice, são o grupo com maior número de gestações de 10 a 14 anos, segundo o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC). De 2015 a 2023, 131.719 nascidos eram fruto de gestações de crianças e adolescentes negras nessa faixa etária. Entre as brancas, foram 31.082 nascimentos no mesmo período. Ou seja: em números totais, a gravidez entre crianças negras foi quatro vezes mais frequente.

Quando comparamos a proporção de nascimentos nessa idade com o total de nascimentos dentro de cada raça, porém, a coisa muda de figura. A cada 10.000 mil crianças indígenas que tiveram nascidos vivos em 2023, 309 foram meninas de 10 a 14 anos. Entre as negras, foram 65 e, entre as brancas, 26.

Proporcionalmente, portanto, as meninas indígenas têm o maior número de gestações dos 10 aos 14 anos. A Gênero e Número se aprofundará nas questões relacionadas a elas em uma reportagem separada, a ser publicada em agosto.

Antes dos 14 anos, vale lembrar, toda gestação é fruto de estupro de vulnerável, o que dava à menina direito ao aborto legal. Como Alice* só teve a gestação descoberta ao chegar em estado de urgência, ela não teve acesso ao direito.

A gravidez em crianças e adolescentes muito jovens representa um elevado risco de morte materna. A ovulação, que pode ocorrer em uma menina de 10 a 14 anos, não indica que seu corpo está preparado para gestar, alerta o médico Olímpio Moraes, pesquisador e gestor do Centro Integrado Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife, Pernambuco.

“Estima-se que meninas tenham um risco 38% maior de mortalidade materna”, afirma o médico com base em estimativa da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).”

“O corpo delas ainda está em formação, por isso, há vários riscos associados à gravidez, como maior probabilidade de parto prematuro, aumento da incidência de pré-eclâmpsia e outras síndromes hipertensivas e risco de hemorragias pós-parto.”

As meninas negras também são as maiores vítimas de mortalidade materna. De 2015 a 2023, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, 111 crianças e adolescentes de 10 a 14 anos de todas as raças morreram durante a gestação, o parto ou o puerpério. Dessas, 79 eram negras, ou seja, 71%. Dezoito eram brancas (16%), sete eram indígenas (6%) e uma era amarela (1%). As demais meninas não tiveram a raça notificada.

Além do aspecto biológico comum a todas as meninas dessa idade, a vulnerabilidade socioeconômica, avivada pelo racismo estrutural, torna as meninas negras mais inclinadas ao risco de morte materna. O racismo determina quem terá acesso ao aborto legal e seguro, à assistência pré-natal e à rede de apoio para lidar com a maternidade extremamente precoce.

Na corrida pelo acesso a esses serviços, as meninas negras largam em desvantagem. Segundo a publicação do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), em parceria com o CIDACS-Fiocruz e o Instituto de Saúde Coletiva, “Sem Deixar Ninguém para Trás: Gravidez, Maternidade e Violência Sexual na Adolescência”, meninas indígenas e negras se destacam no grupo daquelas que não realizaram sequer uma consulta pré-natal. Elas também formam a minoria entre as que afirmaram ter realizado sete consultas ou mais.

A professora adjunta do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, pesquisadora associada do CIDACS-Fiocruz Bahia e membro do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), Dandara Ramos, reforça que a gravidez entre crianças negras é uma violação de direitos humanos. “Estamos falando de um risco muito alto de evasão escolar e de manutenção de ciclos de pobreza que tem um endereçamento racial muito claro”, detalha.

Como o racismo estrutural distancia essas meninas do acesso aos serviços de aborto legal e de pré-natal de alto risco, a morte materna, mais do que um risco, ganha nuances de sentença atribuída à raça e à classe social.

Estupro de vulnerável

Alice, a criança ribeirinha de Coari, é a materialização do desamparo no qual a gravidez na infância lança meninas negras. Para seu algoz, a gravidez da menina era uma evidência do crime que ele cometia.

Existe um vínculo íntimo entre os autores de estupro de vulnerável e suas vítimas: 73% das meninas negras foram violentadas por conhecidos, sendo 26% pais ou padrastos, segundo dados preliminares de 2024 do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Isso possibilita uma ameaça perene, tornando nebulosa a descoberta do crime e o socorro à vítima. Esse combo de violências é a tecitura do elevado risco de morte dessas meninas.

Marcela, a médica que atendeu a menina Alice em Coari, reforça: “No meu ambulatório, já atendi meninas de 14 anos, uma de 13. A mãe disse que não ficaria na consulta, porque a menina estava com o esposo. Isso não entra na minha cabeça, pois a gente sabe que a gravidez que ocorre em meninas de até 13 anos, 11 meses e 29 dias é estupro”.

No Brasil, o número de estupros de menores de 14 anos é bem maior do que o registrado nas demais faixas etárias. Segundo o Sinan, em 2024, dos 49.833 estupros contra mulheres identificados, 18.580 (37%) envolveram vítimas menores de 14 anos. Mais da metade dessas vítimas (59%) são negras.

Se olharmos para os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, que acaba de ser lançado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), vemos que os números são bem maiores. De um total de 87.545 registros, 55,6% são de vítimas negras, sem distinção de gênero – e 28.802 (32,9%) são de crianças de 10 a 13 anos, sem distinção de gênero ou raça.

Essa diferença de milhares de registros entre as duas bases é explicada pela forma os dados são coletados. Isabella Matosinhos, pesquisadora do Fórum, explica que os dados do Sinan vêm da notificação obrigatória nos serviços de saúde, exigida por lei”. Já os dados do anuário são produzidos com base em microdados de registros de ocorrências policiais, enviados pelas secretarias de segurança pública estaduais em resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação realizado pelo fórum.

Isabella enfatiza que a diferença nos números “não significa que as mulheres buscam mais as instituições policiais do que os órgãos de saúde”. O que acontece, segundo ela, é que o registro na saúde enfrenta desafios, como “a falta de capacitação dos profissionais de saúde para realizar o preenchimento correto e a resistência de hospitais, especialmente privados, em notificar e acionar a rede de acolhimento às vítimas”.

Só buscou o hospital quando passou mal

Alice* não foi a única menina vítima de mortalidade materna que ouvimos falar em Coari, no Amazonas. Francisca*, enfermeira da Pediatria e do Alojamento Conjunto do Hospital Regional de Coari, lembra o momento em que passou a acompanhar Joyce*, uma menina negra de 13 anos, moradora de uma comunidade ribeirinha local.

“Quando eu olhei para a cama, me assustei. Ela era uma criança, tinha um corpo bem pequeno que se perdia naquela cama de adulto”, conta. A garota tinha uma cicatriz de cerca de dez centímetros na pélvis: havia acabado de dar à luz, via cesárea, ao filho fruto de uma série de estupros cometidos pelo próprio pai.

Questionada sobre o direito da menina ao aborto, Francisca disse que, como a gravidez foi descoberta aos cinco meses, o procedimento “era proibido” e “ela tinha que parir”. A enfermeira está errada. O Código Penal Brasileiro não estabelece um limite de tempo gestacional, e a Organização Mundial da Saúde afirma que esse tipo de limitação está atrelado ao aumento da mortalidade materna, como foi o caso de Joyce.

O aborto legal pode ser realizado a qualquer momento da gestação, sem necessidade de autorização judicial.

Tentamos contato com membros do conselho tutelar que atuaram no caso, em 2019. Nenhum dos membros contactados pela reportagem disse integrar a Zona três, responsável pelo caso de Joyce. Por isso, afirmaram não poder falar sobre o assunto.

Com 70 mil habitantes, Coari tem o segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) do Amazonas. O município é formado por comunidades ribeirinhas e povos indígenas, que vivem a quilômetros da área urbana. Todas as fontes ouvidas pela Gênero e Número enfatizaram que “é muito comum ver crianças grávidas em Coari”.

A reportagem levantou os números e comprovou que a taxa de natalidade em crianças na cidade se sobrepõe à nacional. Em 2023, o risco de uma menina de 10 a 14 anos engravidar em Coari era cinco vezes maior do que no Brasil de forma geral. O dado é do Registro Civil.

O caso de Joyce aconteceu em 2019, e o homem foi preso após um exame de DNA confirmar a paternidade do bebê. Com medo, a menina escondeu a gestação por meses. Nunca fez uma consulta de pré-natal e só foi ao hospital quando apresentou eclâmpsia – mal que decorre da implantação incorreta da placenta no útero e faz com que o corpo combata a gestação.

Crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos, grávidas de primeira viagem e mulheres hipertensas ou com diabetes são mais propensas a desenvolver o problema, que poderia ter sido prevenido caso alguém tivesse levado a menina ao serviço de saúde quando os primeiros sintomas apareceram. Joyce morreu em decorrência da eclâmpsia, e o bebê ficou internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal sob acompanhamento médico.

Médico especialista em ginecologia e obstetrícia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e integrante da equipe do Hospital Regional de Coari, Alef Alioscha explica que “a paciente adolescente não tem um preparo fisiológico para a gestação, e essa placentação errada acaba acontecendo mais”.

Mesmo tentando manter um certo distanciamento das condições nas quais o parto se deu, Francisca sentiu o coração partido. “Ela era uma criança calada. Não reclamava de nada, pois acho que já era ameaçada. Se falou algo, foi para a psicóloga, pois nesses casos é acionada uma equipe inteira”, destaca com voz embargada.

Joyce morreu em silêncio, sem escolha, sem tempo, sem segurança, sem cuidado, sem justiça.

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