Hospitais ignoram mulheres que procuram aborto em casos previstos por lei

06 de julho, 2019

Relatório inédito da organização Artigo 19 revela que menos da metade dos hospitais públicos indicados pelo governo fazem o procedimento

(Exame, 06/07/2019 – acesse no site de origem)

Realizar um aborto legal no Brasil é uma via-sacra para as mulheres. O procedimento é autorizado pelo Código Penal nos casos de gravidez decorrente de estupro e risco à vida da mãe, e o caso de anencefalia do feto foi incluído neste rol após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ainda assim, menos da metade (43%) dos hospitais públicos indicados pelo Ministério da Saúde para efetuar o procedimento de fato o fazem nos casos previstos.

O dado é de um relatório inédito da organização não-governamental britânica Artigo 19, intitulado “Acesso à informação e aborto legal”, que mapeou os principais desafios para garantir o cumprimento da legislação para as mulheres brasileiras.

Ao longo de um mês, o órgão tentou entrar em contato com 175 hospitais públicos do Brasil, listados pelo governo federal para ofertar o serviço, com a proposta de entender o processo e as dificuldades de realização do aborto legal no país.

Desses, apenas 76 informaram que fazem o procedimento, ao passo que 64 negaram a oferta do serviço e 35 não responderam à pesquisa.

Para garantir precisão nas informações, o levantamento foi feito por meio de duas figuras distintas, a da usuária e a da pesquisadora.

A primeira, que se identificou como uma cidadã em busca do serviço de aborto legal, conseguiu retorno de 140 instituições. Já a segunda, que disse ser da Artigo 19 e pediu para falar diretamente com alguém do corpo técnico do hospital, obteve informações de apenas 22 estabelecimentos.

De acordo com a pesquisadora Julia Rocha, da equipe de acesso à informação da Artigo 19, todo o processo para elaborar o levantamento sobre aborto legal foi desafiador.

“A primeira barreira foi encontrar a lista dos hospitais recomendados pelo Ministério da Saúde e pelo Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Apelamos até para Lei de Acesso à Informação. Ou seja, só o primeiro passo mostra que o aborto legal é inexistente no Brasil”, diz.

Depois de selecionados os hospitais, contudo, mais obstáculos foram encontrados no caminho, como o desencontro de informações e exigências de documentos não previstos na legislação.

Dos hospitais consultados pela pesquisa, por exemplo, 16 mencionaram o Boletim de Ocorrência entre os documentos necessários para a realização do aborto legal. No entanto, a apresentação do B.O. não é uma exigência prevista para o procedimento desde uma portaria editada pelo governo federal em 2005.

Desses 16, um deles se recusou a fornecer mais informações para a usuária sem o B.O em mãos, e outro afirmou que sem o registro não seria possível iniciar o processo. Outro hospital, ainda, relatou que só realizaria o abortamento em caso de estupro se fosse apresentado exame de corpo de delito.

Julgamentos

O relatório aponta que, além da dificuldade do acesso à informação, houve, ainda, julgamentos morais e de desconfiança por parte dos atendentes dos hospitais.

Enquanto a pesquisadora foi tratada com suspeita, com questionamentos sobre quem ela seria e o que é a Artigo 19, a usuária foi tratada com “descaso e rudeza”.

Dentre as respostas mais significativas ou que causaram estranhamento, uma série de hospitais que não praticam o aborto disseram que não o fariam, “pois é crime”.

A análise destaca, também respostas como “deus me livre!”, “claro que não faz aborto”, “aborto é crime e aqui não defendemos direitos humanos para bandido” e “nenhum médico realizará o procedimento”.

“Temos a hipótese que os servidores estão mal treinados para oferecer informações sobre o aborto legal no Brasil. Além disso, não consideramos que é desconhecimento dos profissionais, mas um grande medo, devido ao momento de instabilidade política, de se posicionarem sobre o tema, que ainda é um tabu”, afirma a pesquisadora Julia Rocha.

O que diz a legislação

No Brasil, não há uma lei que permite o aborto, mas sim exceções previstas no Código Penal, que, na verdade, criminaliza a prática, com penas previstas de três a dez anos de detenção. A realização do aborto legal segue, portanto, normas editadas pelo Ministério da Saúde mas que não têm força de lei.

A mais consolidada é a “Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento”, um guia que tem por objetivo transmitir as informações necessárias para os profissionais e serviços de saúde sobre o tema.

Há também um outro documento, a Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que obriga o médico que se recusar a praticar o aborto, por objeção de consciência, a direcionar a mulher a outro profissional.

Apesar dessa possibilidade, são quatro as situações que proíbem, veementemente, o profissional de saúde de não fazer o procedimento: risco de morte para a mulher; em qualquer situação de abortamento juridicamente permitido, na ausência de outro profissional que o faça; quando a mulher puder sofrer danos ou agravos à saúde em razão da omissão do profissional; no atendimento de complicações derivadas do abortamento inseguro, por se tratarem de casos de urgência.

De acordo com Ana Paula Braga, advogada especialista em direito das mulheres do escritório Braga & Ruzzi, o médico que tratar uma paciente que realizou aborto clandestino não pode, inclusive, denunciá-la.

“Nestes casos, o médico ou enfermeiro deve prestar o acolhimento clínico necessário, e deverá guardar o sigilo profissional, sob pena de cometer sanções ético-disciplinares”, diz.

A especialista orienta, ainda, que, em caso de recusa como os averiguados pela pesquisa da Artigo 19, a mulher deve entrar em contato com a Defensoria Pública de seu estado ou com um advogado particular.

“O problema é que ações judiciais podem levar tempo, o que não atende à urgência da gestante, que a cada semana que passa se torna mais impedida de abortar, visto que há um limite de semanas para que o procedimento possa ser realizado”, completa.

Por Clara Cerioni

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