Também majoritariamente católico, e esmagadoramente cristão, o Brasil corre em sentido inverso ao do país europeu em relação ao aborto
(CartaCapital, 07/06/2018 – acesse no site de origem)
A influência do catolicismo em sua cultura e ordenamento público imprimiu à Irlanda a reputação de um dos países mais conservadores do antigo continente. Sob o peso do catolicismo, o país possuía uma das legislações mais restritivas sobre aborto na Europa. Felizmente este peso não foi capaz de desequilibrar a balança para o lado do moralismo e barrar o salto qualitativo que coloca o país agora entre os mais avançados do mundo no que se refere à legislação sobre aborto.
No dia 25 de maio, 64% da população da população votante foi às urnas e destes mais de 66% disse “sim” à revogação da 8ª Emenda Constitucional Irlandesa, aprovada por votação popular em 1983. A Emenda era responsável por igualar o direito à vida do feto ao da mulher e previa, na época, até 14 anos de prisão para a mulher que praticasse aborto. Devido ao forte estigma moral envolvendo a questão, a educação sexual nas escolas também era proibida.
Com a revogação, o aborto fica legalizado até a 12ª semana de gestação e em casos de riscos para a saúde da mulher até a 23ª semana, além de possibilitar que seja implementada educação sexual nas escolas, enfrentando o conservadorismo e hipocrisia que envolvem as questões relativas à sexualidade e à reprodução.
Resultado das transformações no seio da cultura irlandesa impulsionadas pela luta das mulheres pelo reconhecimento e garantia de seus direitos, a vitória do “sim” em um país fortemente marcado pela religião, atesta para o mundo o descompasso existente entre as determinações dogmáticas da hierarquia e da experiência ética-religiosa de seus fiéis. Como registrou o Irish Times: “a ilusão de uma Irlanda conservadora e dogmaticamente católica foi pelos ares”.
O Brasil também majoritariamente católico, e esmagadoramente cristão, corre em sentido inverso da Irlanda. Distante dos dispositivos de democracia direta como referendos e plebiscitos, populações negligenciadas em seus direitos como mulheres e LGBTs ficam à mercê de tomadores de decisão vinculados, por convicção ou interesses, a organizações religiosas que atuam para obstaculizar e retroceder direitos fundamentais.
No que se refere ao aborto, a legislação brasileira conta atualmente com três permissivos: em caso de estupro, risco de morte para a mulher e anencefalia. Projetos como o Estatuto do Nascituro, desmembrados em inúmeros outros, tentam reverter esses permissivos e transformar os úteros em territórios sob o domínio público e estatal.
Lógica semelhante de controle também vemos em projetos absurdos como o em tramitação na Assembléia Legislativa de São Paulo, que visa proibir a venda de bebida alcoólica à gestantes. Incutida no projeto está a ideia de que gestantes são completamente incapazes de agir de maneira consciente e responsável, precisando para isso da tutela do estado sobre seus corpos e suas decisões.
O que por si só já é um total despropósito, fica ainda pior com a aprovação da Reforma Trabalhista que permite que gestantes trabalhem em ambientes insalubres, deixando à critério dos patrões a segurança do feto e seu desenvolvimento. O único desenvolvimento que se busca proteger, está evidente, é o do sistema capitalista.
A exploração capitalista não é adepta de moral alguma, mas se utiliza da que mais lhe convém para sua expansão. A moral que inferioriza mulheres e as colocam sob controle de qualquer pessoa, menos elas próprias, é absolutamente útil a este sistema.
Como já exaustivamente debatido e demonstrado pela experiência de diferentes países, a legalização do aborto não implica em maior número de procedimentos, mas em seu contrário.
Da mesma maneira está evidente a simbiose existente entre o conservadorismo e as práticas nefastas como o abuso de mulheres e de menores. A própria Irlanda é exemplo disso, como veio à tona em 2009 o acobertamento por pelo menos 40 anos dos abusos cometidos por membros do clero.
A aposta conservadora no obscurantismo e na ignorância só tem gerado morte e sofrimento. A maioria da população irlandesa deu-se conta disso, tomando as rédeas da condução de sua história. Deu um estrondoso “sim” à vida das mulheres calando a influência religiosa no ordenamento jurídico do país e no destino das pessoas.
Por mais que essa questão seja recorrente nas reflexões aqui propostas, somos forçadas a voltar a ela, quando nossa realidade não apresenta avanços, mas, pelo contrário, dá sinais de retrocesso. Lutamos por um tempo em que por aqui também tenhamos superado tudo isso e já não tenhamos que nos repetir. Um tempo em que verdadeiramente também sejamos sujeitas de nossa própria história.
Gisele Pereira, historiadora e cientista da religião, professora do Ensino Básico; integrante da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir. Escreve às quartas-feiras