“Cheguei na delegacia com dores, pediram para eu não ter o bebê naquela hora”
(Brasil de Fato, 07/03/2018 – acesse no site de origem)
“Fui presa no sábado, grávida ainda. Quando cheguei na delegacia, já estava com dor. Dormi no chão. Com o nervosismo por estar naquele lugar, no fedor, com bichos, só piorou. Acabei entrando em trabalho de parto. Pediram para eu ter calma, não ter filho naquela hora”, contou Jéssica Monteiro, de 24 anos, enquanto amamentava o pequeno Enrico, em um barraco de tábuas improvisado na ocupação onde mora em um galpão no Brás, Zona Leste de São Paulo (SP).
Há quase um mês, no dia 11 de fevereiro, a história de Jéssica repercutiu por todo o país, diante das inúmeras violações que a jovem sofreu. Acusada de tráfico de drogas, após a Polícia invadir a ocupação onde vive e encontrar 90 gramas de maconha, ela foi detida prestes a completar nove meses de gestação, ouvindo de um policial que ele não se importava, porque o bebê que a jovem esperava “não era filho dele”.
Depois de entrar em trabalho de parto e ter assistência negada até a última hora, Jéssica foi levada para o hospital. Ela conta que, antes disso, os policiais chegaram ao ponto de chamar outro detento para realizar o parto na delegacia. “Ele [o preso] explicou para o carcereiro que não dava [para fazer o parto] porque [o local] era muito sujo e o bebê ia pegar uma infecção. Aí, me colocaram dentro de uma viatura. Ganhei ele às 7h14, fiquei todo o tempo sendo escoltada, algemada junto com meu filho. Eu não esperava ter um parto assim”, lamentou.
Três dias após dar a luz, Jéssica foi levada novamente para a cela suja, dessa vez, com o recém-nascido em seus braços, e passou, o que acredita, ter sido o momento mais difícil de todo o processo. “Eles queriam que eu entregasse o Enrico para a minha família, para eu poder ficar presa lá. Passei frio a noite com ele, fiquei com muito medo, porque ele tinha acabado de nascer e não tinha tomado nenhuma vacina importante. Arrumaram um cobertor para mim, eu tava morrendo de frio, porque eu estava só com a camisola do hospital”, contou.
Imagens da jovem deitada em um colchão atrás das grades junto ao recém-nascido veiculadas pela imprensa, levaram à intervenção de integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e tiveram como consequência a expedição de um habeas corpus, que concedeu a ela prisão domiciliar. Antes disso, Jéssica ainda foi transferida para uma penitenciária feminina, onde passou mais três dias presa junto com o bebê.
A repercussão do caso de Jéssica motivou indiretamente a decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 20 de fevereiro, de que mulheres grávidas ou com filho de até 12 anos que estejam presas preventivamente têm direito de ir para a prisão domiciliar. O habeas corpus coletivo deve beneficiar ao menos 4 mil detentas, praticamente 10% do total de presas do país, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Até então, as mulheres encarceradas podiam permanecer com os filhos recém-nascidos nas penitenciárias por no máximo seis meses. Depois, as crianças eram tiradas do convívio com a mãe e entregues à família ou levadas para abrigos de menores.
“Isso pode ser uma oportunidade dos filhos não crescerem revoltados, sem a mãe, porque às vezes só contam com a mãe naquela hora. Eu fiquei feliz porque eu via a agonia das mães. Eu vi duas crianças que completaram seis meses indo embora. É doloroso, a criança e a mãe ficam desesperadas. Eu pensava que ia passar a eternidade lá. Se jogam você em um lugar desses, esquece, você passa, dois, três, quatro anos, sem julgamento nem nada”, disse.
Ré primária, Jéssica alega inocência e destaca que sequer teve a chance de se defender na audiência de custódia (que acontece até 24 horas depois da denúncia), por estar em trabalho de parto. Com indignação, a jovem conta que a promotora que pediu a prisão dela também estava grávida. “Ela poderia estar no meu lugar. Fiquei triste com isso”.
Desde então, Jéssica vem questionando as violações de direitos que sofreu. A jovem, que costumava trabalhar como vendedora de água, catadora de materiais recicláveis e cabeleireira, apontou para o barraco escuro, onde havia uma cama de casal, uma geladeira, um microondas e armários, enquanto denunciava o tratamento que recebeu do Estado.
“Minha vida é essa, vivo em ocupação, de doações, bem diferente da realidade de um traficante. Como eu estaria vendendo droga e não colocando na minha casa uma comida, um investimento para meus filhos? Muitos ricos cometem os mesmos crimes que as pessoas pobres, mas têm sempre tratamento diferenciado”, opinou.
“Não podia ter mantimento na minha casa por conta de rato, barata, que entrava e roía tudo. Isso parece bem diferente da vida de uma pessoa que tem poder com o crime”, apontou. Agora, às vésperas de outra reintegração de posse na ocupação onde vive, Jéssica destaca que nem mesmo lhe explicaram como funciona a prisão domiciliar. “Eu tenho que levar meu filho para o médico, o outro para a creche. Mas se me abordarem na rua e quiserem me levar para a cadeia, eu não posso fazer nada”, disse.
Após os acontecimentos das últimas semanas, os sonhos de Jéssica são tímidos. Ela conta que quer esperar os filhos crescerem para poder fazer um curso profissionalizante de cabeleireira e tentar “‘bicos’ na área, se Deus permitir”. “Já era difícil arrumar um emprego, agora, com passagem [na prisão] vai ficar ainda mais difícil. Mas vou tocar a vida, com meu filho de três anos que só perguntava de mim quando eu estava fora, e com meu bebezinho. Vou sobrevivendo por eles, porque meu psicológico está muito mexido. Mas tô forte por eles”, disse, acariciando os pés do bebê, que dormia no colo dela.
Edição: Camila Salmazio | Fotos: Julia Dolce