Uma mulher pobre e em situação de rua foi forçada a se submeter ao procedimento cirúrgico, além de ter sido vítima de condução coercitiva, prática suspensa pelo STF
(Fórum, 10/06/2018 – acesse no site de origem)
Uma mulher pobre e em situação de rua, chamada Janaína Aparecida Aquino, foi obrigada por um promotor a se submeter a uma cirurgia de esterilização sem direito de defesa, inclusive, sendo vítima de condução coercitiva para que o procedimento fosse realizado. O caso aconteceu na cidade de Mococa, em São Paulo. O juiz, por sua vez, não realizou audiência, não nomeou um defensor e não pediu documentos que mostrassem que ocorreu consentimento por parte da mulher, que tem filhos. Apenas determinou a condução coercitiva para a operação. A denúncia foi feita por Oscar Vilhena Vieira, na Folha de S.Paulo.
Primeiramente, o promotor usou de uma ação civil pública para ordenar o procedimento e, com isso, forçou o município a praticar um ato ilegal. Outro grave aspecto é que, em função da situação de vulnerabilidade de Janaína, ele deveria ter nomeado um defensor público para que a representasse judicialmente. Portanto, a mulher não foi ouvida e nem defendida. Não houve, sequer, uma audiência a respeito do caso. Ela foi conduzida à força. Além disso, a prática da condução coercitiva foi suspensa por decisão liminar do Supremo tribunal Federal (STF).
O caso provocou indignação. O Instituto de Garantias Penais (IGP) divulgou uma nota de repúdio à situação:
O Instituto de Garantias Penais (IGP) vem a público repudiar com energia a ultrajante violação dos direitos e garantias fundamentais de – necessário atentar para o que a pobreza dificultou perceber – uma cidadã brasileira, Janaína Aparecida Aquino. Como noticiado, o Ministério Público manejou, de forma aberrante, ação civil pública para pedir que o Estado laqueasse as tubas uterinas da mesma mulher que, em 23.01.2017, compareceu ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para retirar todos os pedidos de exames agendados com essa finalidade.
Um juiz da comarca de Mococa/SP não só deferiu o pedido como ordenou que fosse realizado mediante condução coercitiva. À Janaína, mulher de rua e drogadicta, não foi oferecido advogado que fizesse sua voz ser ouvida no processo. Ela não teve vez alguma quando se discutiu o seu próprio direito à reprodução. Em suma, a inobservância do rito a transformou não em sujeito, mas em mero objeto processual.
Ao tempo que o Tribunal de Justiça de São Paulo foi provocado para interromper a marcha violadora, a cirurgia já havia acontecido. A esterilização compulsória e eugênica, como a que se faz com os animais, evoca “O Processo” kafkiano. Janaína K. acordou detida por pessoas que não conhece, a fim de responder a processo judicial do qual não sabe o motivo, movido por uma justiça que agora rende à clientela típica do direito penal os abusos em outras searas jurídicas.
Como analisou o crítico Luiz Costa Lima, o pesadelo literário nem mesmo permite o alívio de se pensar: o Estado não pode bater à minha porta à hora que bem entenda. A Lei do Planejamento Familiar dispõe, em seu art. 10, hipóteses em que a esterilização voluntária é permitida. Leia-se: mesmo quando desejada, sua consecução é legalmente restrita. Nosso ordenamento jurídico repudia que a pessoa seja obrigada a se submeter à esterilização. Cirurgia invasiva desautorizada não é cirurgia: é lesão irreversível à integridade física. O princípio da dignidade da pessoa humana, apesar de sua envergadura constitucional, foi sumária e sucessivamente atropelado pelo parquet e pelo judiciário de primeiro grau. Essa distopia dá vida, portanto, às palavras do Min. Marco Aurélio, quando preconizou “tempos estranhos, muito estranhos, geradores de grande perplexidade nacional”.
É de Janaínas cotidianas que se alimenta o jacobinismo togado, adubado pelo afã do Ministério Público, que assola o país. A sociedade tem amargado sucessivos desrespeitos às garantias fundamentais embaixo do próprio nariz, e sua gravidade crescente impossibilita sabermos onde esse momento crítico aterrissará. Por fim, o IGP vem reiterar suas finalidades institucionais de primar pela escorreita observância dos preceitos constitucionais por parte dos agentes do Estado, repudiando de pronto quaisquer abusos cometidos.
Ticiano Figueiredo, Presidente do Instituto de Garantias Penais
Laqueadura consentida
O juiz Djalma Moreira Gomes Jr., da Vara de Mococa-SP, por sua vez, divulgou uma nota sobre o caso de Janaína Aparecida. Segue a íntegra da nota:
O artigo de Oscar Vilhena, publicado na Folha de S.Paulo, denominado “Justiça, ainda que tardia – moradora de rua teve esterilização determinada sem direito de defesa”, carece de esclarecimentos, dado o equívoco de informações e a ausência da descrição da realidade dos fatos.
Na verdade, a mulher, chamada Janaína Aparecida Quirino, não é, nem era, moradora de rua e concordou com a laqueadura proposta pelo Ministério Público de Mococa, conforme consta nos autos do processo, sem oferecer qualquer resistência.
Ao contrário, expressamente declarou em cartório da Vara de Mococa que “é mãe de sete filhos (ela estava grávida do oitavo filho quando fez esta declaração) e está de acordo em realizar o procedimento de laqueadura para evitar nova gestação indesejada, estando ciente de que há um processo nestes termos tramitando na Comarca de Mococa/SP”. Esse documento está juntado aos autos do processo e foi também subscrito pela diretora de Serviços da Vara, na presença da psicóloga forense.
A sentença ressalta que “se denota que a requerida é pessoa capaz, muito embora não possua condições de fornecer os cuidados necessários à futura prole. Aliás, não pesa contra Janaína qualquer decisão ou pedido de curatela, com fundamento em eventual incapacidade”, pelo que não lhe foi nomeado curador especial.
O caso de Janaína e sua família vem sendo acompanhado há anos pela Comarca de Mococa. Hoje, ela tem oito filhos. Três do primeiro casamento de Janaína estão sob a guarda do pai (um deles internado por dependência química). Dos outros cinco com o atual companheiro, três foram adotados, um bebê está em processo de adoção e uma adolescente encontra-se em abrigo social.
Todos os filhos passaram pelo Serviço de Acolhimento de Mococa, alguns em mais de uma ocasião, devido à negligência dos pais em desempenhar devidamente suas funções, expondo-os a situações de risco, com o agravante de serem dependentes químicos (de “crack” e de bebida alcoólica) e não aderirem ao tratamento proposto, apesar de várias intervenções da rede protetiva do município.
O ambiente familiar sempre foi permeado pela dependência química dos pais, não adesão ao tratamento indicado, agressões físicas entre o casal, violência física contra os filhos por parte do atual companheiro, dificuldades financeiras. Além disso, o casal passou a traficar drogas.
Foram oferecidos atendimentos técnicos (Psicologia e Serviço Social), através de inúmeras visitas domiciliares, orientações sistemáticas e intervenções no contexto familiar. A família também recebia benefícios sociais, pela rede municipal (aluguel social, cesta básica, custeio de contas de água e luz). Os filhos foram matriculados em escolas e projetos educacionais, mas a frequência era irregular.
Em relação à dependência química de Janaína e do seu atual companheiro, ambos foram inseridos reiteradamente em tratamento ambulatorial (CAPS-AD) e de internação, porém sem adesão, recaindo ao vício.
Diante do fato do acolhimento prolongado dos quatro filhos menores e considerando que o contexto familiar não apresentou mudanças significativas, em audiência concentrada foi instaurado o processo de destituição do poder familiar, culminando com destituições e adoções.
Paralelamente, o Ministério Público ajuizou ação solicitando o procedimento de laqueadura de Janaína. No bojo da ação, foi realizada avaliação psicológica.
Durante o trâmite da ação, Janaína compareceu ao cartório e expressamente manifestou ciência e concordância com a pretensão de laqueadura. Cabe ressaltar que Janaína foi ouvida por diversas oportunidades, por mim, em audiências sobre seus filhos.
Mais recentemente Janaína e seu atual companheiro foram presos em flagrante por tráfico de drogas e por associação para o tráfico. Encontram-se reclusos e condenados, em primeiro grau, por esses crimes.
Juiz Djalma Moreira Gomes Jr., da Vara de Mococa-SP