Enquanto a disponibilidade em farmácias permitiu que argentinas acompanhassem abortos de maneira pública, brasileiras ainda são obrigadas a buscar remédio no mercado clandestino.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da International Women’s Media Foundation (IWMF), como parte de sua iniciativa sobre Direitos Reprodutivos, Saúde e Justiça nas Américas.
A legislação argentina sobre aborto era similar à brasileira até 2020, quando o procedimento foi legalizado no país rioplatense. Mas, uma década antes de o Congresso aprovar a lei de interrupção voluntária da gravidez, movimentos feministas que acompanham pessoas que desejam interromper uma gestação com medicamentos já tinham uma atuação pública. Muitas das ativistas eram conhecidas por seus nomes e sobrenomes.
No Brasil, onde o aborto é permitido em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia, também há redes que acompanham quem deseja realizar o procedimento com medicamentos. A diferença é que, pelo medo da criminalização, as ativistas até hoje não falam publicamente sobre seu trabalho – ainda que o uso do misoprostol para interromper a gravidez tenha sido descoberto pelas brasileiras, no final da década de 1980.
Cytotec nas farmácias
Conhecido no Brasil pelo nome comercial de Cytotec, o misoprostol é uma versão sintética da prostaglandina, substância similar a um hormônio, que provoca contrações no útero e é usada para interromper gestações, controlar hemorragias ou induzir partos. Desenvolvido em 1973 pela farmacêutica Searle, o medicamento passou a ser vendido nas farmácias do país em 1986 para o tratamento de úlceras gástricas.
O efeito abortivo da prostaglandina já era conhecido por pesquisadores que investigavam a substância desde a década de 1930. Mariana Prandini, doutora em Ciência Política pela New School for Social Research e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), lembra que a própria farmacêutica, embora negue, já havia realizado estudos na Alemanha com mulheres que desejavam interromper a gestação e que havia um grupo de trabalho na própria Organização Mundial da Saúde (OMS) que se dedicava a estudar os usos do misoprostol.
Não se sabe ao certo como essa informação, até então restrita a círculos de especialistas, passou a ser de público conhecimento no Brasil, mas Prandini aponta para uma hipótese: a cultura da automedicação e o acesso fácil a remédios podem ter contribuído para que o misoprostol ficasse famoso não pelo seu uso indicado, mas pelo que a bula relatava como efeito adverso.
“Nos anos 1980, as pessoas recorriam aos farmacêuticos quando tinham algum problema de saúde. As mulheres também iam até a farmácia quando tinham uma gestação indesejada”, aponta Prandini, que pesquisa a interseção entre o direito e a política, com foco nas lutas de movimentos feministas.
“É importante salientar o papel dos farmacêuticos, dos trabalhadores das farmácias, porque essas pessoas leem a bula. E a bula dizia: ‘mulheres grávidas não utilizem´. Então, se você não quer estar grávida, você utiliza o medicamento”.
Ainda que, naquele momento, não houvesse conhecimento sobre a posologia mais segura do remédio para interromper uma gestação, o impacto positivo da disseminação do uso do misoprostol na saúde de mulheres e pessoas que gestam é descrito em diferentes estudos. Um deles é o da antropóloga Silvia De Zordo, que entrevistou obstetras e ginecologistas que trabalhavam em hospitais públicos sobre a redução de casos graves de abortos incompletos.
Em 2001, o relatório final da CPI da Mortalidade Materna afirmou que “com o advento do misoprostol houve uma diminuição de complicações pós-aborto em comparação com o uso de outros métodos” e que “em todo o país, constatou-se a explosão do uso deste medicamento como indutor do aborto, apesar das restrições à sua venda.”
Misoprostol sob controle
Em 1998, uma portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) incluiu o misoprostol em uma lista de substâncias sujeitas a controle especial. Desde então, o medicamento – usado para abortos na Argentina em combinação com a mifepristona, um inibidor de progesterona que interrompe a gestação – só pode ser encontrado legalmente em estabelecimentos hospitalares cadastrados. Quem vender ou distribuir o remédio pode ser acusado de crime contra a saúde pública, com uma pena mínima de 10 anos de reclusão e multa, segundo o Código Penal – o dobro da sentença prevista para uma pessoa condenada por vender ou fornecer drogas, de acordo com a Lei N°11.343.
Em 2003, a OMS publicou a primeira edição de Abortos sem riscos – guia técnico e de políticas para Sistemas de Saúde, que já recomendava o uso do misoprostol, combinado com a mifepristona, para a realização de abortos. Em 2005, a organização incluiu ambas as substâncias na sua lista de medicamentos essenciais.
Nas últimas duas décadas, a OMS atualizou as diretrizes para uso do misoprostol, baseadas em evidências científicas produzidas a partir da experiência de diferentes países com o aborto medicamentoso, e manteve a recomendação do método como seguro e eficaz para a interrupção da gestação sem necessidade de hospitalização, com orientações recebidas em ambiente ambulatorial.
Ainda assim, o misoprostol continua na lista de substâncias controladas no Brasil, que é atualizada frequentemente. Em 2021, a Anvisa recebeu 307 contribuições para uma consulta pública sobre a revisão da portaria que restringiu o acesso ao misoprostol. Do total de pessoas físicas e jurídicas que enviaram seus pareceres, entre elas entidades e profissionais de saúde, 162 estavam parcial ou completamente de acordo com a revisão da norma, mas a regulação não foi alterada.
A reportagem entrou em contato com a Anvisa e realizou pedidos de entrevistas, que não foram atendidos. Em comunicado enviado por e-mail, a despeito das evidências produzidas nas últimas duas décadas, a agência justifica a manutenção da regulação com a alegação de que “o misoprostol, principalmente quando utilizado sozinho, pode falhar e esse evento ocorre em 10% dos casos. A gestação, então, pode vir a não ser interrompida e o feto ficar exposto a reações adversas, que ainda não são bem conhecidas”.
Na contramão do que já se sabe sobre aborto medicamentoso, que pode ser realizado em casa e com acompanhamento remoto, o comunicado também afirma que “orientações em documentos técnicos deste Ministério [da Saúde] mencionam que devido ao possível risco de sangramento excessivo e o eventual efeito psicológico de observar a expulsão do conteúdo uterino, a partir do uso desse medicamento, a mulher deve ser conscientizada sobre os procedimentos, devendo a paciente permanecer internada até a finalização do processo”.
“A restrição legal cria um estigma em torno do aborto medicamentoso no Brasil, apesar de ser uma técnica recomendada pela OMS”, afirma Clara Wardi, mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Mulheres (NEPeM/CEAM/UnB).
Wardi lembra que os riscos associados ao uso do misoprostol no Brasil se relacionam com a própria regulação da Anvisa mais do que com os efeitos do remédio.
“O movimento feminista faz uma diferenciação entre o aborto seguro e o aborto inseguro. Ambos podem ser feitos com misoprostol, mas o primeiro é feito a partir de orientações e com acompanhamento. Já o aborto inseguro é realizado sem as indicações necessárias, e esse é o grande perigo. As mulheres, meninas e pessoas que gestam são empurradas a essa rede clandestina, que é um reflexo da criminalização do aborto no Brasil”.
Entre 2007 e 2023 quatro projetos de lei foram apresentados à Câmara dos Deputados e dois ao Senado com o objetivo de restringir e aprofundar a criminalização da oferta de misoprostol. Apesar da perseguição, o remédio circula e ainda é amplamente utilizado para interromper gestações no país. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021, 39% das brasileiras que abortaram haviam usado medicamentos.