Em entrevista ao Catarinas, a advogada aborda desafios enfrentados por organizações que resistem a retrocessos e o papel das fake news e da desinformação no debate sobre o aborto legal.
Impulsionada por valores patriarcais, desinformação e moralismo, a ofensiva antiaborto tem ganhado força na sociedade e no Congresso, especialmente no último ano. Em resposta, organizações feministas, como a ONG Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), seguem na linha de frente da defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, liderando há décadas a luta pela descriminalização e legalização do aborto no Brasil.
O Portal Catarinas conversou com a advogada Leila Linhares Barsted, cofundadora e coordenadora da Cepia, que desde 1990 atua na promoção da saúde, no combate à violência contra as mulheres e na defesa dos direitos reprodutivos. Barsted foi uma das redatoras da Lei Maria da Penha, referência global no enfrentamento à violência doméstica.
Na entrevista, ela compartilha o que a motivou a ingressar no ativismo feminista ainda na adolescência e analisa os desafios enfrentados por organizações como a Cepia, que resistem aos retrocessos. Além disso, aborda como grupos de extrema direita e fundamentalistas religiosos recorrem à desinformação para manipular o debate sobre a interrupção da gravidez, tanto nos casos previstos em lei quanto na luta pela descriminalização.
Você tem uma longa trajetória na defesa dos direitos das mulheres no Brasil. O que a motivou a ingressar nessa luta?
Eu venho de uma militância de esquerda desde o final dos anos 1960. Fiz a Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, que era um centro de mobilização estudantil muito forte. E, nessa militância política, já contra a ditadura, eu também tinha outra militância, digamos assim, intelectual. Sempre fui uma leitora compulsiva, e um dos livros que caiu em minhas mãos, ainda na adolescência, foi o de Simone de Beauvoir.
Eu me lembro de que conversávamos na escola, eu e minhas amigas adolescentes, sobre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Nós achávamos maravilhoso que os dois fossem totalmente autônomos, eram um casal, mas moravam separados. Era interessante como esses novos arranjos afetivos e matrimoniais já apareciam na minha adolescência.
E foi assim que a militância política de esquerda e a sensibilidade para as questões das mulheres caminharam lado a lado em minha vida. Claro que, já na década de 1970, isso se intensificou à medida que fui participando de grupos de reflexão feminista aqui no Rio de Janeiro. Criamos grupos sérios já nos anos 1973 e 1975.
Organizamos na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a semana sobre o papel e o comportamento do governo e da sociedade brasileira. Foi um seminário de uma semana que lotou a ABI, em plena ditadura, mostrando o interesse das pessoas em acompanhar esse debate.
E, naquela época, a gente teve contato também com intelectuais que, mesmo que não fossem diretamente nossas professoras, já estavam produzindo conhecimento sobre a situação das mulheres no Brasil. Moema Toscano, por exemplo, na área da sociologia; Carmen da Silva, escritora da revista Cláudia, que tinha uma militância feminista; Lélia Gonzalez, entre muitas outras. Eram antecessoras que, felizmente, estavam vivas naquela época e, por meio de uma militância acadêmica, traziam uma reflexão profunda e muito positiva sobre a situação da mulher no Brasil.
O cenário atual traz desafios cada vez maiores para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos. Como você avalia o papel das organizações da sociedade civil na resistência contra retrocessos?
Eu avalio como fundamental.
Na realidade, até muito pouco tempo eu poderia dizer que nós estávamos sozinhas nessa luta. Mas, talvez devido à radicalidade das mensagens da extrema direita, especialmente no que diz respeito ao impedimento do aborto legal para meninas, essa questão passou a ter uma grande repercussão na sociedade e na imprensa.
Assim, começamos a ver manifestações de organizações não feministas, de entidades da sociedade civil e da mídia, que passaram a pautar temas como aborto, gravidez na adolescência, dados estatísticos sobre meninas grávidas e estupros. Tenho notado a palavra “aborto” sendo mencionada com mais frequência nos canais de televisão que acompanho. Por isso, acredito que estamos, pouco a pouco, ampliando nosso campo de alianças.
Nós estamos lançando para a sociedade uma ideia de uma despenalização social do aborto. Já que não conseguimos avançar no poder legislativo, precisamos também atuar na sociedade, nas representações sociais. Desconstruir essa ideia da família “margarina”, com papai, mamãe, onde todos estão sempre felizes. Na realidade, essa família, muitas vezes, é a de um homem que viola a criança. Por isso, precisamos incluir em nosso discurso a crítica a esse modelo de família.
Por outro lado, acredito que o diálogo com o poder, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é importante. O Supremo abriu um canal de escuta para os movimentos sociais, o que foi inovador. Ele tem ouvido essas organizações nas diversas ações em que o movimento atua.
Acredito que as organizações de mulheres se fortaleceram em sua capacidade de argumentação e de mobilização, assim como na realização de campanhas nos meios de comunicação, tanto em nossas próprias mídias quanto na grande mídia. Ou seja, os movimentos feministas têm demonstrado uma grande capacidade de articulação e reação rápida sempre que surge uma situação de risco.
Um exemplo recente é a articulação em torno da resolução do Conanda e a mobilização do movimento para garantir o apoio da sociedade na defesa do órgão. Claro que esse caminho agora talvez seja mais difícil, com toda a política norte-americana, o discurso antiaborto e as fake news sobre o aborto.
Na disputa de poder que ocorre na sociedade, o movimento feminista e as organizações de mulheres são protagonistas muito fortes.
Temos a capacidade de dialogar com mulheres de diferentes grupos, sejam católicas, pentecostais, da classe média ou de setores populares, porque, praticamente, chegamos à conclusão de que todas as mulheres conhecem alguém que fez aborto — e muitas mulheres fizeram o procedimento.
Essa é uma reflexão importante que precisamos levar a todos os grupos com os quais trabalhamos. Existem vários grupos discutindo violência, entre outros temas, e, em breve, falaremos sobre aborto, com as mulheres compartilhando seus testemunhos, muitas vezes sobre o isolamento vivido nessas situações.
Eu acho que é um movimento de muita pujança. Tanto o movimento brasileiro quanto o latino-americano, de forma geral, são reconhecidos como movimentos de organizações feministas com grande atuação. Temos, portanto, esse motivo também para nos orgulharmos.
Quais são os principais desafios enfrentados pelas organizações feministas e de direitos humanos no Brasil hoje?
Bom, são muitos desafios. Primeiro, o grande desafio de sobreviver, de continuar contando com o apoio de doadores nacionais e internacionais. A busca pela sobrevivência das equipes e pela sustentabilidade financeira das organizações é um desafio constante, que ocupa uma grande parte do trabalho das nossas organizações.
Outra coisa com a qual nos deparamos como desafio é na área de comunicação. Como fazer com que nossa comunicação seja cada vez mais direta, que atraia um grande público, e que fale a linguagem das pessoas.
Outro ponto é dar continuidade a essa articulação nacional entre as organizações e os movimentos de mulheres na luta pelos direitos humanos, pelo respeito à dignidade humana e pela questão do aborto.
Talvez outro desafio, eu diria, seja mobilizar mais setores. Por exemplo, mesmo os setores LGBTQIA+ poderiam ser mais atuantes na questão do aborto. Nas comunicações feministas, atuamos muito na defesa dos direitos LGBTQIA+, agora com toda a questão da transexualidade. Seria muito importante que esses outros movimentos, que estão sob a grande capa dos direitos humanos, pudessem se manifestar.
Há muitos movimentos de esquerda ou setores de intelectuais que não se envolvem. Alguns dizem, inclusive, que isso são questões divisionistas, continuando o mesmo discurso da década de 1970. Dizem que nós, mulheres, dividimos a pauta dos direitos. Então, há, mesmo em setores progressistas, uma dificuldade de entender que a luta das mulheres, em suas diversidades — de gênero, de raça e orientação sexual — é uma luta democrática. E que nós não nos isolamos das demais lutas.
Estamos presentes nas lutas pelos povos indígenas, pelos povos originários, pela questão climática, pelo enfrentamento da miséria. Enfim, nós, feministas, estamos envolvidas em todas essas lutas. Mas, nem sempre, os setores de esquerda, os chamados setores progressistas, nos apoiam e entram em aliança.
De um lado, há a dificuldade desses setores, presos a um modelo de “primeiro vamos eliminar a pobreza para depois discutir as outras questões”. E, por outro lado, acho que nesses setores também existe um discurso machista, que desvaloriza as lutas das mulheres.
Então, ao atuar junto a esses setores, também deveríamos ter um plano bem definido para tentar mudar essas mentalidades, embora isso não dependa só de nós. Realmente, vemos na discussão sobre o aborto, parlamentares que, em princípio, são progressistas, mas que votam contra ou se omitem.
Como a desinformação tem sido usada como uma estratégia política pela direita conservadora no Brasil para influenciar o debate sobre o aborto, tanto no que se refere ao aborto legal quanto à luta pela descriminalização?
Bom, primeiro, todo o discurso em torno da vida: o que é a vida? Eu acho que isso foi muito debatido no STF, quando apreciou a ação sobre células-tronco. Há debates, manifestações, principalmente de Carlos Ayres Brito, muito importantes sobre o que é a vida, o início da vida, não no sentido do início da vida biológica, mas do início da vida para o direito. A vida começa com o nascimento. Então, há um discurso que precisamos aprofundar mais nos nossos debates, porque é esse discurso que eles entram.
Segundo, é o discurso de demonizar as mulheres que estão fazendo debates sobre o aborto. Em vários momentos, eu participei de debates e, inclusive, um dos últimos foi no Congresso Nacional. Enquanto eu falava, as pessoas passeavam com fetinhos nas mãos, desfilando, nos chamando de criminosas. Então, somos consideradas criminosas, é uma desqualificação das nossas competências.
No campo médico, por exemplo, há a desqualificação do pessoal na área da enfermagem. Ou seja, as enfermeiras não têm poder nenhum. Quem decide sobre o aborto legal são os médicos. Então, é importante questionarmos isso. Por quê? Por que são os médicos? As enfermeiras sempre foram aquelas que faziam os partos, por exemplo. Sempre cuidaram dessa questão, mas a população médica foi retirando o poder das enfermeiras. Com qual argumento? Elas não têm qualificação.
A gente vai pegando uma série de coisas da direita, sem falar na utilização de inteligência artificial, montando e espalhando mentiras e, ao mesmo tempo, esse emburrecimento, essa falta de capacidade crítica da sociedade que escuta esses absurdos.
Desde a desqualificação da vacina, por exemplo, escutam esses absurdos, acreditam e repassam. Isso é um bom estudo sociológico, antropológico e psicanalítico: que processo é esse que faz com que as pessoas percam a sua capacidade de autocrítica, a sua capacidade de pesquisa, sua capacidade de duvidar daquilo que estão ouvindo e percam a sua capacidade de conhecimento, de saber? Isso é algo muito preocupante, não só para nós, feministas, mas para toda a democracia. E esse movimento cresce.
A eleição do Trump, agora, mostra bem isso. A tentativa de convencer todos os americanos de que todos os imigrantes são bandidos, a tentativa do terror: “Se você não for embora, a gente vai te jogar em Guantánamo”. Então, a extrema direita, além dessas mensagens de fake news, está usando mensagens para que as pessoas sintam medo, e o medo paralisa. Esse é um dado muito importante que nós, no movimento das mulheres, dizemos: não, diante de cada batata quente que aparece. Continuamos nos mobilizando, não temos medo, por mais que saibamos que, às vezes, são ameaças muito concretas, até contra as nossas vidas.
A retórica da mentira, da desinformação, agora está vindo com o discurso do ódio, o discurso do medo.
Eu mesma me senti assim. Em todo ano de eleição, eu usava uma camiseta com o nome do meu candidato, e nesta última eleição eu não usei, porque o nível de agressividade era tão grande que você poderia ser agredida na rua se não estivesse de verde e amarelo. Estamos vivendo um contexto nacional e mundial muito mais tenso, muito mais preocupante do que talvez há 10 ou 15 anos, quando, de alguma maneira, a luta política era uma luta por argumentos e não uma luta por ameaças.
Agora, estamos nesse novo espaço, que é um espaço de preocupação, e esperamos que o Estado possa resolver isso de forma democrática. Por isso, estamos dizendo não à anistia dessa turma toda, que tem toda a agressividade, tanto para destruir as instituições quanto para destruir os movimentos sociais.