Desde abril, o principal serviço de aborto legal do país está em novas mãos. Depois de 24 anos sob o comando do ginecologista Jefferson Drezett, que acabou se tornando rosto do atendimento e defensor das mulheres que buscam por ele, assume a coordenação do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do Hospital Pérola Byington, na cidade de São Paulo, a ginecologista Alessandra Giovanini.
(Universa, 28/06/2018 – acesse a íntegra no site de origem)
Aos 47 anos, Giovanini começa no cargo em meio a uma tensão encabeçada por organizações pró-aborto. Em maio, o Grupo de Estudos Sobre o Aborto (GEA), que reúne médicos, juízes e intelectuais em defesa do tema, emitiu um comunicado lamentando a saída de Drezett. Eles a consideram “uma grave ameaça aos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos no Brasil”. Alessandra garante que não há o que temer. “O serviço está funcionando a todo vapor”
Inaugurado em 1994, o setor de aborto do Pérola Byington é recordista nacional em interrupções de gravidez previstas em lei – apenas em casos de estupro, risco de vida à mãe e feto anencéfalo, essa última, uma decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal. Nenhum outro serviço de saúde chega perto de seus números. Só em 2017, o Pérola realizou 400 abortos. No Estado de São Paulo, o hospital que chega mais próximo disso é a Maternidade Prof. Mario Degni, localizada em Rio Pequeno, que, segundo dados do Ministério da Saúde, fez oito (sim, oito) interrupções no primeiro semestre do mesmo ano.
Universa foi até o Pérola Byington conversar com Giovanini, a médica que carrega nas costas a responsabilidade de manter o serviço “de forma exemplar” como fazia seu antecessor.
Universa: Você é a primeira mulher a coordenar este serviço?
Alessandra: Não. Outras duas mulheres já ficaram no lugar do doutor Jefferson em períodos de licença ou férias dele.
Como é ser mulher, mãe de dois filhos, e realizar abortos?
Não dá pra dizer que é fácil. Fazer um aborto não é uma coisa agradável porque a gente sabe que tira uma vida. Dá pra ver o feto quando se faz a aspiração, e é uma coisa triste. Mas, ao mesmo tempo, o procedimento é um alívio muito grande para a paciente, que está numa situação de extrema angústia. E a gente, também como mulher, sente o alívio junto. Essa mulher acorda da anestesia agradecendo muito pelo procedimento. A impressão é de que a partir daquele momento, a vida dela vai poder continuar.
Há motivo para o GEA alegar “grave ameaça a direitos” com a saída de seu antecessor?
De jeito nenhum. Isso não tem cabimento. Não estamos encaminhando pacientes pra lugar nenhum, nem negando atendimento. Eu não faço ideia do por quê seria uma grave ameaça, como eles disseram.
Por que o Pérola Byington se mantém, por mais de 20 anos, como o único hospital do Brasil a realizar com regularidade abortos previstos em lei? Há outros hospitais habilitados a fazer o procedimento, não?
Tem muito entrave de profissional da saúde, que não aceita o procedimento por causa de valores pessoais. Ouço muito das pessoas: ‘Por que você foi trabalhar logo nesse setor?!’. O Pérola é um modelo em matéria de aborto legal graças ao doutor Jefferson. Ele se dedicou para que o serviço não deixasse de existir. Isso contagia quem vem trabalhar aqui. A gente também toma partido das mulheres e luta diariamente para o serviço continuar.
Há quantos médicos na equipe de aborto?
Eu e mais duas médicas.
Médicos podem alegar “objeção de consciência” e não realizar o procedimento. É o caso de alguma de suas colegas?
Esse é um direito do profissional. Porém, no hospital, deve sempre existir alguém que faça o aborto. Ou seja, o médico pode alegar objeção de consciência, a instituição, nunca. Isso não acontece com as médicas do Pérola. Sabem onde trabalham e que devem fazer abortos.
Vocês fazem aborto em mulheres que alegam terem sido estupradas pelos maridos?
Sim. E esses casos não são raros. Não é difícil identificar quando há violência dentro do casamento. Os casos chegam a ser caricatos, bastante pesados e, geralmente, ligados a uma violência doméstica duradoura. Tem uma paciente nossa que passou por três abortos por causa da violência de um ex-companheiro. Ele invade a casa dela, com muita agressividade, e a estupra. Nesse caso, junto com ela, decidimos por um anticoncepcional hormonal subdérmico. O método dura três anos e é mais eficaz do que a laqueadura.
Sente-se pressionada por ocupar o lugar do doutor Drezett?
Não diria pressionada, mas com certeza é uma responsabilidade grande. Somos o único serviço que de fato funciona plenamente. Imagina o que acontece com as mulheres se a gente falha. Além disso, é um trabalho cheio de processos e burocracias; não se trata apenas da parte médica.
Quantos abortos são feitos por semana no Pérola atualmente?
Cerca de oito. Portanto, um pouco mais de 30 por mês. [Dados do Ministério da Saúde mostram números parecidos para os meses de 2017 no hospital.]
Todo dia o hospital realiza o procedimento?
Quase todo. São dois dias de procedimento de aspiração, que exige centro cirúrgico. Fazemos três na segunda-feira e três na quinta. E internamos, em média, duas pacientes por semana para indução com misoprostol [popularmente conhecido como Cytotec], que são as mulheres com gestação de 12 até 22 semanas.
Por que realizam a aspiração apenas nas segundas e quintas-feiras?
Precisamos do centro para outras cirurgias. Ele é dividido com todos os outros setores do hospital: mastologia, endoscopia ginecológica, oncologia. Outra coisa: é possível agendar os casos de aborto nesses dois dias. É suficiente por enquanto.
Se uma grávida chega ao Pérola buscando aborto, mas não foi estuprada, não está em risco e nem espera um feto anencéfalo, você realizam o procedimento?
De forma alguma. Somente realizamos a interrupção dentro da lei.
Como chegou à coordenação do serviço?
Conheci o doutor Jefferson no Hospital Leonor Mendes de Barros. Ele era chefe de plantão e eu, residente. Quando acabei minha residência, ele me convidou para trabalhar no Pérola. Então, estou aqui desde 1996 e, desde 2000, atendia na emergência, recebendo as mulheres vítimas de violência. Em abril, quando o doutor Jefferson disse que sairia, meu marido [André Malavasi], que é diretor técnico do hospital, me chamou para assumir a coordenação do serviço.
Há rumores de que o afastamento do doutor Drezett se deu porque ele tinha diferenças com o diretor geral do Pérola. São verdadeiros?
Doutor [Luiz Henrique] Gebrim e doutor Jefferson tiveram umas diferenças. Gebrim queria diminuir os abortos, enquanto Jefferson lutava para que isso não ocorresse. No fim, apesar dessas diferenças, o número de casos nunca foi diminuído. No mais, o doutor Jefferson estava muito cansado. Ele tirava férias oficialmente, mas vinha trabalhar. Isso aqui foi o grande trabalho da vida dele.
Tem religião? Ela influencia na profissão?
Sim, sou católica. Até penso: será que estou mesmo fazendo o certo quando realizo as interrupções? Mas daí vejo o desespero das mulheres que chegam aqui, do quanto elas precisam do procedimento, e que se nós não as ajudarmos, ninguém vai ajudar. Então, tento não pensar muito nas minhas crenças religiosas. Tento separar completamente a profissão da religião.